Kelma Jucá

A internet nossa de cada dia

Se o palanque do espaço virtual nos dá voz, cega-nos para nossas limitações de empatia e até cognição intelectual

Por Kelma Jucá, jornalista | 14/02/2022 | Tempo de leitura: 4 min

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Kelma Jucá

A quem interessa ter um milhão de amigos no Facebook? Sítio onde moram seres hábeis em versar sobre a política, a história contemporânea, a macroeconomia e a ciência com ênfase no controle de pandemias e no desenvolvimento de vacinas. São os famosos sábios de quotiliquê. Anônimos que se vestem de um pseudossaber sobre qualquer assunto, cuja vestimenta pode variar conforme o tema do agenda setting do momento.

No ano passado, lamentei a perda de um amigo um tanto próximo – no Facebook. Discordamos sobre aquele senhor lá que teima em não honrar a liturgia do cargo que ocupa no Palácio do Planalto, em Brasília. Foi uma peleja que durou algumas horas e muitos posts, em que o então amigo insistia na exaltação do homem medíocre. Enfadada da arenga sem fim, larguei mão do celular e entreguei os pontos tal qual um animal acuado.

Logo depois, iria perceber que ele teria me excluído do rol de amigos e me bloqueado. Como um touro sangrando de dor, foi como sentisse estacas perfurarem o tecido do meu corpo até então revestido do mais alto bem querer àquele que, na surdina do meu offline, me lançou varas com pontas de arpão no pescoço. Foi um duro golpe. Eu o tinha como um pai postiço.

A bem da verdade, desde as últimas eleições presidenciais de 2018, o feito nem de longe é um caso isolado. Os filósofos de botequim – com o devido respeito aos donos de botequim – multiplicam-se. E sob a injustificável proteção do álcool ganham espaço e visibilidade para falarem quaisquer asneiras. Do alto de sua morada no Olimpo, enquanto movimentava delicadamente sua taça para oxigenar o vinho, Baco desaprovou o comentário indecente, imoral e sorumbático de Monark sobre o nazismo.

Claro, tem também os cuidadores da vida alheia, pois nada melhor do que arremessar pedras no telhado do vizinho, desde que estilhaços não recaiam sobre o próprio teto de vidro temperado, um tanto mais resistente às variações de temperatura dado que são muitas as camadas de moral e bons costumes, mas, ainda assim, de vidro. Então, vamos criticar a roupa da mulher que leva o filho para a escola; a própria vida já está ganha mesmo! E vamos meter o bedelho sobre a empresária que não vê saída para o assédio do gênero masculino a não ser proibindo-lhe a entrada na sua loja de moda praia, num shopping em São José dos Campos. E cá estou apenas expondo como é muito fácil soltar o veneno da crítica sabendo que o problema não lhe pertence.

De tanta toxidade no ciberespaço, resolvi dar um tempo na minha relação com as redes. Pus-me a ler Oscar Wilde. A obra-prima “O retrato de Dorian Gray” é o supra sumo da elegância em forma de escrita, combinada com crítica social, pinceladas de humor e a mais fina ironia sobre a decadência do caráter humano. Lembrei do Instagram. Se vivo fosse, o personagem de “rara beleza” que dá título ao livro seria um aficionado pela rede mundial de compartilhamento de fotos, com selfies no teatro, imagens lendo a edição vespertina de “The Globe” e uma galeria exclusiva com fotos ao lado do piano.

Fez-me refletir. Para quem são as nossas fotos? O registro do flagrante. O congelar de um momento. A gravação, supostamente eterna, do instante. Para quem queremos, desesperadamente, nos expor? Por que somos tão amostrados?  A quem interessa o close perfeito? A xícara do café? O treino “pago” da academia? Com a despensa cheia de comida, por que mendigamos por “biscoito”? E eu, como uma usuária adicta, faço questão de usar o verbo na primeira pessoal do plural, pois me incluo nas questões – até por que, só por hoje, nada postei.

Particularmente, não tenho nada contra o uso das redes sociais desde que ancorado no entendimento de que os algoritmos nos deixam numa bolha confortável de interesses que combinem com o nosso próprio umbigo e que, como usuários, somos o próprio produto para os anunciantes – estes, sim, os clientes. Se o palanque da internet nos dá voz, cega-nos para nossas limitações de empatia e até cognição intelectual.

Que não seja penoso o ato de trocar a leitura superficial de pílulas de informação pela folheada saborosa num livro atemporal o qual, escrito no ano de 1891, é capaz de ecoar críticas na atual sociedade das selfies e das notícias de fast food. Que as redes sociais sejam pontos de conexão, não de morada e que sirvam para aproximar quem está longe, sem que para isso afaste aquele que está perto.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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