Kelma Jucá

Hora do rush

Sair do trabalho e voltar para casa pode ser uma aventura meditativa ou uma coleção de meras divagações sobre a experiência humana

Por Kelma Jucá, jornalista | 08/04/2022 | Tempo de leitura: 4 min

Kelma Jucá
Kelma Jucá

Tentou buscar uma saída. Caiu na contramão de uma rua. Levou um buzinaço. Mais para frente, no fluxo natural dos carros, pegou um sinal amarelo. Não sabia se avançava ou parava. De tanto pensar, o sinal ficou vermelho. Ficou a matutar se não seria isso o que estava a fazer com a própria vida. É que tudo merecia uma reflexão e reflexões bem executadas – estamos falando de uma pessoa perfeccionista! – demandam tempo. E, assim, passou a demorar-se em tudo.

Estava a pensar sobre a decisão de adotar um bichinho ou pintar o cabelo de roxo. “O que a minha mãe vai falar?”. Estava em dúvida se deveria continuar na profissão ou montar um negócio ou seguir o fluxo. No congestionamento da vida cotidiana e vulgar, era o que fazia de melhor: seguir o fluxo. Não por que seguia a maioria, mas por que se adaptava à cada nova situação como um camaleão no deserto. “Cabelo rosa deve ressecar demais. Um gato talvez fosse mais apropriado no apartamento”.

A caixa de e-mails pessoais estava abarrotada de mensagens inúteis. Por que o apego ao que não tem serventia? “Existe a expressão ‘acumulador virtual’?”. Que horas começaria a excluir os 1.507 e-mails não lidos? Se temos algo a que atribuímos nenhuma serventia, na verdade, o nosso dever moral é descobrir qual a serventia daquilo que não nos serve e, ainda assim, cultivamos sem qualquer serventia.

Por que dar água a uma planta que já morreu? Será que era de plástico e nunca percebeu? “Isso deve revelar algum significado da minha psiquê”. O vazio vai sempre ser preenchido por algo. O vácuo de alguém abre espaço para a presença de outro, qualquer que seja o outro. Mas, se não existe espaço para o vazio como é que o vazio se ocupa no espaço?

Precisava olhar as suas sombras para se iluminar. Na teoria, era simples. Silenciar-se, para se ouvir. Olhar para dentro, e se ver. Mas o que ouvia era o barulho de pensamentos ariscos, indomáveis e autopunitivos. O que via era o escuro do breu de suas dúvidas mais cruéis, tristezas escondidas e traumas profundos. “Olha pro céu, meu amor. Veja como ele está lindo”, cantou. Luiz Gonzaga era mesmo um gênio. É a trilha sonora perfeita para o romance perfeito na época de São João. Estamos em abril.

Olhou para a frente e não reconheceu que carro seria aquele. “Faz tempo que não pego estrada e é tão bom dirigir em linha reta”. É que dirigindo tinha a sensação de que a vida está nas mãos e, subitamente, sabia para onde ir. De modo intuitivo e certeiro, sabia quem era. Sempre acontecia quando pegava a estrada. Talvez fosse por estar em movimento. Dirigir na estrada é como ser uma pedra na montanha, um animal na floresta ou a poeira no ar. Você apenas é. E ser já é o suficiente. Dirigir um carro era guiar o próprio destino, pensou.

Ligou o rádio. Tocou uma música norte-americana. Soltou um suspiro. Cantou junto e desafinado. Seria um sinal? “Sempre que a esperança pousa em mim, meu coração toca violino”. Mudou o pensamento, pois estava de rímel. Não era hora para se desmontar. Poderia era largar tudo e dar uma volta ao mundo. “Maldita pandemia!”. Outra opção seria se tornar missionária e divulgar o Evangelho. Lembrou que precisava voltar para a academia. “Esse verão promete!”.

Desligou o rádio. Não quis gastar a sua esperança ali. Num fim de noite. Pós-expediente. Fez uma nota mental de ouvir novamente a canção quando chegasse em casa. Mesmo sabendo que não faria isso. De fato, não o fez. Precisava voltar a estudar inglês. “Oxe!”. Era muito confortável falar que não sabia o idioma e pronto, sendo que sabia algo. Sentiu que estava querendo mudar desse velho lugar de desculpas amarrotadas e ir para um espaço-tempo de sonhos surreais transformados em metas palpáveis. “Aproveito e estudo árabe também”. Achava que dominava a dança do ventre até conversar com a Grazi, do serviço. “Sei é nada!”.

Ouviu um novo buzinaço. Os carros atrás estavam incomodados com a sua demora em dar partida. O sinal estava verde. “Desde quando?”. Deixou o carro “morrer”. Sem querer, obviamente. Aliás, como assim sem querer? No fundo, deveria querer, sim. “As respostas estão todas dentro de mim”. O problema pode ser esse, é que era boa em fazer perguntas para os outros. Precisava aprender a lidar com as perguntas de si para si e ter paciência para exercitar a arte de ser refúgio quando não tem para onde ir. Ficou satisfeita de estar protegida pelos vidros escuros do carro. Aqueles estranhos nervosos não viriam o seu rosto. Era bom se esconder.

Ligou o carro novamente e deu partida. Estava ilesa. E, agora, estranhamente animada. Ouviu uma má criação de um apressadinho no trânsito e respondeu com um aceno e um sorriso sincero. De tão sincero, virou riso. Estaria enlouquecendo? Já em movimento, lembrou de que o carro e ela eram uma só matéria. “Seria assim em todo o universo se vibrássemos em uníssono?”.  Até que pegou o próximo sinal vermelho. Parou e começou a pensar. Precisava encontrar uma saída.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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