Kelma Jucá

A peia de uma ilusão

Viver é acordar do sono profundo de um delírio qualquer, mesmo que doa – e vai doer

Por Kelma Jucá, jornalista | 24/03/2022 | Tempo de leitura: 2 min

Kelma Jucá
Kelma Jucá

Na minha Terra, existe uma expressão tipicamente nordestina quando queremos nomear uma surra: peia. Quando uma ilusão vai embora é tão doloroso, que equivale a uma peia – no corpo e na alma.

É que na penumbra de nossos desejos e anseios, nos acostumamos muito confortavelmente à ilusão. Como sabe de nossas fragilidades, conta-nos o que queremos ouvir. Faz-nos belíssimos castelos de areia com a jura incontida da eternidade.

A ilusão chega mansa e sorrateira. Sussurra mentiras de cana caiada. Tão descabidas, que a razão, se mãos tivesse, nos tamparia as ouças. Beija-nos as áreas delicadas como se delas fosse íntima ou mesmo dona. Afasta-nos de tudo que não lhe reflete o espelho. Pouco a pouco, afasta-nos de nós mesmos. Ficamos ali presos numa ilusão qualquer, convictos de que “é” isso.

E nos passos iniciais da falta de percepção da realidade, passamos a criar, a inventar junto com a ilusão. E fazemos isso a tal ponto que ultrapassamos o limite de nossa sanidade. E a ilusão vai ficando, se apossando de todos os lugares vazios. Qualquer brecha e lá está, a ilusão. E como quem deseja estar-se preenchido é, pois, um alívio. Mas, tal qual um mofo que não sossega morada e se expande e cresce na curvatura de uma fruta podre, assim o é a ilusão. Ela vai te cobrindo toda a pele, fingindo ser a colcha para quem tem frio – e te sufoca.

Da ilusão, nasce o apego. O que era o sopro de felicidade desvairada se torna consolo incoerente para os dias comuns. E a ilusão nos nutre de alegrias vulneráveis. Líquidas, adaptam-se ao nosso aparelho moral e nosso entendimento particular de mundo. E assim se tornam aceitáveis. Instalam-se dentro da nossa tolerabilidade individual.

E quem duvidaria de que a ilusão nos torna mais humanos? Eu diria que a capacidade de criar ilusões nos faz seguir adiante. Faz-nos sofrer, é verdade. Mas não há crescimento sem dor.

Por mais duradoura que seja uma ilusão, uma hora ela acaba. É finita. Não há mal que tanto dure. Até por que existem outras ilusões por aí. E depois que uma ilusão te corrói o fígado e o espírito, o que sobra é o que resta de ti e a habilidade de pinçar uma nova realidade, que, por sorte, será tangível.

Com a sabedoria de quem sobreviveu a uma ilusão, nossos olhos amadurecem como incrédulos senhores. Mesmo vendo, a gente duvida e questiona. Que perigo! A ilusão não pode nos tornar desiludidos, sem esperança.

A peia de uma ilusão vem para nos tornar fortes, não covardes. O açoite de nossa imaginação delirante é para nos acordar do sono profundo. Como parte de nossa experiência humana, a ilusão até pode nos deixar cicatrizes, porém, é ela mesma o antídoto para o nosso despertar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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