Kelma Jucá

O amor que eu me dou

Não nos ensinam a nos amar antes do outro, mas só uma pessoa inteira está pronta para amar e ser amada

Por Kelma Jucá, jornalista | 24/02/2022 | Tempo de leitura: 2 min

Kelma Jucá
Kelma Jucá

Uma paixão proibida. Você quer muito, mas ele só te faz mal. Você sofre, mas está ali correndo atrás dele. Igual um patinho. No caso específico, semelhante a um bezerro.

Assim tem sido minha relação passional com o leite desde 2017, quando me descobri altamente intolerante à lactose.

Eu não sei precisar como começou. Nem o instante exato e pontual do fato. Minha memória rareia se penso no assunto. Mas, guardo numa tela impressionista à la Monet as lembranças de quando me aprazia nas delícias níveas do líquido que no passado banhou Cleópatra.

No íntimo, eu já sabia que algo não estava bem. Os movimentos peristálticos cada vez mais intensos, assim como a sensação de gestar uma bola de gás hélio eram o prenúncio de que em breve tudo mudaria.

O leite era o meu ritual sagrado diário. Bebia-o, se de tristeza sofria. Da mesma forma, bebia-o se queria jactar-me em júbilo e euforia. Desconfio, aliás, se o vício não era alguma síndrome camuflada nos escaninhos da minha psiquê para quem a todo custo numa brincadeira de esconde-esconde ansiava por permanecer no jardim da infância. O desmame do leite de vaca é um processo psicológico angustiante. Questiono-me se ocorre o mesmo com alguns bebês cuja mãe por qualquer motivo é impedida de lhes dar o peito como oferta de amor, carinho e alimento.

Foi observando o quanto leite me fazia mal que eu comecei a ponderar outros aspectos da vida cotidiana. Quantas vezes me diminuí para caber em lugares pequenos e em relações não recíprocas? Nada é suficientemente bom se nos rouba a paz ou nos infla o estômago. A duras penas, a gente aprende que por trás de um “não” que você dá ao outro mora um “sim” a si mesmo.

Assim, como quem abre mão de um relacionamento tóxico, despedir-me do leite é um gesto de maturidade e uma prova de amor próprio que ouso praticar. Apesar de ser óbvia a decisão saudável de abdicar daquilo que nos adoece, este é um discurso bonito que na prática nos chicoteia a pele que reveste o esqueleto de nossas vontades mais pueris, escondidas no recôndito de nosso ser. Como dizer não para quem você dedica amor? Refiro-me ao leite, àquele afeto romântico não correspondido e até a amizade que só existe na conveniência alheia. Ora! Se eu te amo, preciso amar ainda mais a mim.

Não nos ensinam a cultivar uma relação consigo mesmo.  O espelho está ali para nos lembrar de nós, mas ficamos tão atentos ao cabelo e à remela do olho que descuidamos do principal. Por mais que olhemos o nosso reflexo, esquecemos de nós. Embora esta pareça ser uma relação invisível, ela é real e será a única que iremos sustentar, por certo, até os últimos dias de vida. Foi abrindo mão do leite e de pessoas que me faziam mal que eu entendi que o amor não chega quando você procura, o amor chega quando você aprende a se amar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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