Leilah Moreno é uma é uma mulher poderosa. Multifacetada, a artista joseense conquistou o restrito rol de talentos brasileiros que atuam e cantam com a mesma maestria. São raríssimos os que fazem as duas coisas bem. E olha, ela ainda é exímia dançarina.
Ela é desses exemplos inspiradores de mulher poderosa.
De sonho em sonho, de desafio em desafio, Leilah alcançou tudo o que sempre quis. Trabalhou com o diretor Fernando Meirelles, gravou CDs, atuou em novelas e filmes, participou de séries da Netflix e HBO e, recentemente, voltou a integrar a banda Alta Horas, do programa homônimo. Seu talento rendeu indicações ao Grammy Latino e Emmy.
Como na vida da maioria de nós, mulheres, as conquistas chegam depois de muito sacrifício. Nossa cota de entrega é sempre maior e nem sempre a valorização chega na mesma proporção. Para Leilah não foi diferente e, apesar das dificuldades, sua dedicação a trouxe até aqui. Seu poder está na obstinação e na persistência, na arte de conviver com o autismo sem paralisar-se, nas lembranças alegres da época em que passava as noites na maior rodoviária da América Latina e na superação do medo ao enfrentar três episódios de assédio em convites intimidadores para "testes do sofá". Ao falar abertamente sobre esses e outros assuntos, Leilah dá um show de empoderamento sem resquício de tristeza ou vitimismo. Isso é poder!
"Quando eu quero algo, vou ao encontro, busco. E quando o que procuro vem ao meu encontro, temos uma junção perfeita. Se eu quero algo e aquilo não está a meu favor, não vem até mim, então dou um tempo para entender por que aquilo não se atraiu por mim", explica a artista. "Acredito que os dispostos se atraem", completa. Para ela, vibrar na mesma energia daquilo que se deseja é o caminho.
Quando vemos essa mulher de voz poderosa brilhando no palco do Altas Horas, arrancando sentimentos de simpatia e raiva na pele da MC Dondoka na série Sintonia ou dando vida à sem noção da Kelly em Pico da Neblina, não dá para imaginar que ela possui uma condição rara nas mulheres que afeta a comunicação e o relacionamento com outras pessoas. Diagnosticada com a Síndrome de Asperger, um estado do espectro autista, Leilah fez da dificuldade a mola propulsora para uma nova fase na sua vida. "Desde criança eu sentia que tinha um mecanismo diferente de comunicação, de compreensão, de atitudes e ações. Me identificava muito com a minha família, mas tinha dificuldade em ter relações e manter a comunicação fora do ciclo familiar", explica.
Nem mesmo as comorbidades que acompanhavam a sua condição, como a ansiedade crônica e os quadros de depressão, a limitaram. "Tomei tarja preta por algum tempo, porém quando fui diagnosticada com Asperger, há cerca de nove anos, procurei por terapias alternativas. Não queria mais intoxicar o meu organismo com remédios da medicina tradicional". Leilah mudou a alimentação e hoje é 100% vegana. "Tudo ficou mais leve para mim. Passei a me alimentar da forma mais natural possível. O resultado é que tenho menos comorbidades como balançar de pernas, crises de ansiedade, consigo estar e viver em sociedade sem sentir palpitações. Aliás, eu ficava muito nervosa e ansiosa quando conhecia pessoas e lugares novos, era difícil", lembra. Se o palco sempre foi um lugar seguro, quando estava fora dele era assustador. "Principalmente quando tinha que lidar com muita gente, isso acabava me fazendo viver muito isolada", confessa.
Ao descobrir que a desintoxicação alimentar a deixava mais tranquila e proporcionava uma vida social muito mais fácil, foi libertador. "Vivo bem em relação a isso, apesar de não falar muito sobre o assunto", pontua Leilah, com muita maturidade para lidar com a questão.
Seu projeto pessoal é aprofundar os estudos sobre o transtorno para falar sobre ele tecnicamente em um documentário. "Desejo um dia falar sobre o autismo adulto, que não é uma doença, mas uma forma diferente de agir, de entender, de responder. Isso gera inclusão."
Leilah foi uma menina precoce, desde cedo já sabia o que queria: ser artista. Começou a cantar aos oito anos, e aos 14 já dava adeus a São José dos Campos para estudar música na capital paulista. "Passei em segundo lugar em um teste na universidade de música para uma bolsa voltada para crianças brilhantes com superdotismo".
Nessa época, ir para São Paulo todos os dias era, segundo ela, complicado. Foi então que a menina do interior tomou uma decisão ousada e perigosa: passar as noites na Rodoviária do Tietê. "Minha mãe não sabia e achava que eu estava dormindo na casa de uma amiguinha", diverte-se. "Foi uma época mágica em relação ao conhecimento e à vivência. Não vejo com sofrimento, eu era muito nova e encarava como uma aventura porque era algo que eu queria fazer". Leilah só tinha o dinheiro da passagem e da alimentação. "Foi o período em que mais fui respeitada, porque ali também tinham outras pessoas, muitas mães com crianças, pessoas em busca de familiares, desempregados vindos de outros lugares, pessoas que não tinham onde morar. Isso me fazia perceber o quanto eu era agraciada, que eu tinha uma oportunidade muito grande na minha vida e não estava passando fome nem necessidade, estava em busca de um futuro melhor para mim e para a minha família". Todas as noites, ela se reunia com os ‘moradores’ da rodoviária e compartilhava a sua alegria cantando para eles. "Foram seis meses nesse rolê, uma época de muito crescimento".
Dentro desse caminho evolutivo traçado e seguido por ela, a gratidão tem um lugar fundamental. "Voltar para a banda Alta Horas, principalmente nesse período em que grande parte dos artistas e dos músicos está parada, foi um presente", afirma. Integrar uma banda é um desafio prazeroso. “É também um exemplo de que podemos estar em qualquer área de atuação. Não buscamos só igualdade. Buscamos mais do que isso, ser quem a gente é, e do tamanho que a gente é. Precisamos mostrar que podemos estar em uma banda, na direção de um programa, apresentando, na chefia, em todos os lugares. Foi o pontapé para entender que as mulheres podem sim estar em todos os lugares e devem estar onde elas quiserem".
Talento e sucesso, porém, não a livraram de ser mais uma vítima da desigualdade salarial de gêneros. Segundo dados do PNAD/IBGE, as mulheres ganham menos que os homens em todas as ocupações. Essa diferença supera 30% nos cargos mais elevados. "Já me senti desvalorizada em vários momentos da minha carreira. Dentro do trabalho artístico que desempenho, já vi homens que estavam trabalhando há menos tempo do que eu e exercendo o mesmo tipo de papel recebendo mais. Não tem justificativa", defende.
E o showbiz pode ainda ser muito mais cruel, não só com as mulheres. Os manjados convites para o "teste do sofá" povoam o imaginário coletivo e tomam forma concreta em incursões algumas vezes sutis, disfarçadas de afeição, outras bem mais escancaradas. Seja como for, sempre nefastas e repugnantes.
Leilah passou por três episódios seguidos de assédio desse tipo no início de sua carreira. "Me deixou muito triste e com medo desse meio. Eu já sentia certa insegurança em relação a isso e fiquei ainda mais receosa de trabalhar com homens. Tinha medo de ficar sozinha com homens em escritórios, reuniões, entrevistas", afirma. Naquela época, por medo de ser criticada, Leilah calou-se, mas ela afirma que faria diferente atualmente. "Agora podemos falar mais sobre isso, antes não era possível porque acabávamos sendo julgadas. Precisamos falar sempre, principalmente para a nova geração. Dar voz, se impor e expor quando isso acontece", completa. "Pelo fato de ser uma mulher negra também já fui diminuída, comparada, desvalorizada e, infelizmente, isso foi algo recorrente na minha vida".
Respeitada e admirada no mundo artístico, atuando ao mesmo tempo em três plataformas gigantes (Globo, Netflix e HBO), Leilah conquistou o reconhecimento pelo seu trabalho, porém lamenta que hoje o artista só seja valorizado e reconhecido por meio do seu resultado em números nas redes sociais. Para ela, é preciso ter um outro olhar para o artista, com foco no conteúdo que ele apresenta. "Ser artista perdeu um pouco do sentido da palavra. Não precisa ser cantor ou ator, apenas números, algoritmos", desabafa. "Não tenho esses números porque nunca recorri a ferramentas ou outros recursos para isso, não supri essa necessidade de mercado, quem me segue é porque conhece meu trabalho".
Cancelamentos, fake news, críticas e ofensas - as redes sociais podem e, muitas vezes, são usadas de maneira negativa pelas pessoas. Leilah sabe bem disso e assume que tem dificuldades em relação às críticas. Hoje, ela procura ter uma relação saudável com essas ferramentas. "Não vou mentir, tenho medo de julgamentos, não sei lidar muito bem com isso. Acabo entrando em crise de ansiedade e me deixa muito triste, até por coisas que já passei", afirma. Sua relação com as redes hoje é muito mais cuidadosa e amena. "Gosto de me resguardar, manter a minha privacidade. Não debato mais com as pessoas. Prefiro me preservar para manter a minha saúde emocional, e energética".
Como os bons ventos sempre sopram para quem tem disposição de navegar, mantendo a confiança no seu poder de atração, Leilah continua fazendo planos e recebendo convites para trabalhos especiais. Como o projeto Vozes, desenvolvido por Cid Moreira. "Recebi o convite da Fátima, esposa do Cid, para fazer este trabalho para o seu canal. A intenção é usar o meu lugar de fala, de mulher que veio do interior, de origem humilde, etnia miscigenada, que trabalha dentro de uma TV", explica. Como o convite aconteceu antes da pandemia, ambos estão aguardando um cenário mais seguro para dar andamento ao projeto. "Eu e o Cid somos de gerações, gêneros e atuações diferentes, mas nós dois trabalhamos com a voz. Atingimos as pessoas com a voz. A voz ultrapassa a idade, é singular, é a nossa frequência, nossa identidade sonora".
Além desse projeto, Leilah, que é dona de uma produtora audiovisual, tem planos de lançar um canal com programação positiva para crianças, adolescentes e adultos com conteúdo engrandecedor. "Também está nos meus projetos ser idealizadora de um espaço de terapia holística por meio da energia e do som. Estou buscando me profissionalizar neste sentido", adianta.
Se Leilah pode ser um exemplo de força interior para todas nós, para ela o maior modelo vem de sua mãe, mulher simples do interior, que soube enfrentar as adversidades sem perder a serenidade. "Minha força como mulher vem da minha criação, da minha educação. Observando a minha mãe, como ela procedeu a vida toda desde que eu era pequena. Ela passou por muitas dificuldades com maestria, calma, força e inteligência, inclusive, emocional. Minha mãe foi e é a minha escola de como se manter forte", afirma.
"Me sinto vencedora e não só me sinto como eu sei que sou. Todas nós devemos nos sentir assim, independente do lugar que estamos ocupamos. Dentro de tudo que está acontecendo hoje, o fato de estarmos vivos já nos torna vencedores".