Antes de falarmos de erotização, precisamos entender o que seria um conceito possível para o erotismo.
No ocidente, por exemplo, temos uma forte influência da história das religiões, sobretudo a igreja Católica Apostólica Romana e que instaura na sociedade o conceito de culpa.
Para o escritor e pesquisador francês Georges Bataille, no seu ensaio O Erotismo, ele disseca essa lógica trazendo luz a ideia de que o erotismo entraria no campo do sagrado e dos corpos; bem como para ele, somos seres descontínuos procurando uma certa continuidade no corpo sagrado do outro, logo essa hipótese só pode ser designada por uma atitude essencialmente religiosa.
A partir desse movimento, podemos amarrar a ideia de Freud no seu ensaio social chamado O Futuro de uma Ilusão, no qual os homens desamparados sublimam o complexo de édipo pelo amor de um “Deus pai” e vivem em busca desse amor projetado a vida inteira como uma forma de apaziguar as angústias e amortecer a culpa.
“A religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade e, tal como a da criança, teria sua origem no complexo de Édipo, na relação com o pai”. Freud. O Futuro de uma Ilusão.
Podemos pensar também na forte influência do mito de Eva nas construções dessa narrativa de que a queda da humanidade, o pecado, a dor e o sofrimento são associados a essa figura feminina desde o início.
Portanto, um homem não sustenta ser dominado por aquilo que ele não conhece, logo a violência de gênero está associada à transgressão que o feminino instaura nos homens.
Quando pensamos em “Erotização”, entendo que o termo é colocado de forma massificada por aquilo que entendemos como indústria cultural, definida por Adorno e Horkheimer na escola de Frankfurt e, dentro dela, todas as negociações de desejo são colocadas na lógica capital, do lucro, portanto, uma imagem feminina a serviço dos bens de consumo transforma as mulheres em objetos sem desejo, pois desejo requer fartura e consciência, e a as massas direcionam a libido ao estado infante do “belo, recatado e do lar”, aquilo que é posse. Ora, se eu transformo, por meio da indústria cultural, do marketing e das narrativas sociais uma mulher em um produto de ingenuidade plastificada, logo se detém o poder sobre elas, e nesse ínterim começamos a espiar as estruturas patriarcais que fortalecem o machismo.
Será que há limites entre a exploração da sexualidade feminina e a infantilização?
Penso que não há limites. Se houvesse, os dados de violência contras as mulheres teriam diminuído, o que não é o caso, infelizmente.
Sou otimista quando reflito na união entre o feminino e o masculino, como já dizia a genial autora Fernanda Young, mas ainda precisamos de séculos de educação para chegar nesse lugar, afinal Bataille bem disse que o erotismo é “esse estranho autodesconhecimento humano”.
A pornografia que limita as potências sexuais
Creio que a pornografia nasce pronta e com o único objetivo de limitar o desejo, em outras palavras, reduzindo e idiotizando as potencias que o erotismo poderia trazer nas relações humanas. O erotismo se alimenta dos detalhes, da continuidade do ser, da união dos corpos, do sagrado e de uma certa disruptura com nossas próprias culpas. É um ato de coragem. E que já foi debatido por filósofos iluministas no século XVIII, como Sade, Voltaire e Diderot, por exemplo. O que mais precisamos?
A pornografia e as rachaduras no nosso espelho social. Estamos feridos com os cacos de vidro.
A pornografia nos transforma em objetos de uso e descarte. Podemos ver isso sendo discutido no campo das artes, do cinema, da tecnologia. As bonecas plásticas de IA sendo desumanizadas para satisfazer o fetiche pelo fetiche, tal qual um botão que liga e desliga.
Pensando como mulher que explora o próprio erotismo como linguagem artística na literatura, na fotografia e no cinema, devo assumir que obviamente “Toda a minha nudez foi e será para sempre castigada”.
Claro que a quarta onda do feminismo foi um importante marco, com os movimentos de união nas redes sociais, o #metoo por exemplo e tantas outras pautas que estimularam o debate crítico; sinto sim as mulheres mais confiantes ao relatarem seus desejos seus traumas, a questionarem seus direitos reprodutivos, assim como as leis de proteção às mulheres, que se mostram positivas, apesar de ainda caminharem em passos lentos.
Moda e estética para quem?
Podemos pensar também na história da moda como uma ferramenta de expressão e protesto e também de violência, como por exemplo “a roupa feita para parecer sexy” “a roupa ideal para os corpos magros”, “o corset sufocante do século XVI como forma de moldar o corpo ao padrão da época”, “a roupa pesada que quase estrangula uma celebridade em Cannes” e tantos outros exemplos que eu poderia ficar aqui escrevendo.
Também tenho relatos pessoais e de amigas autoras que já ouviram absurdos no campo da arte como por exemplo “você escreve como um homem”, ou “Você é um Bukowski de saia”, como se de fato a literatura tivesse gênero e esse gênero fosse pautado exclusivamente pela linguagem e olhar “masculino”, o que quero dizer aqui é que, pensando como a grande escritora e jornalista espanhola Rosa Montero, a literatura está além do bem e do mal, está num lugar onde os gêneros e as tentativas de definições fracassam. Isso pode soar um pouco contraditorio ao universo feminista, mas acho ainda que muitas feministas pecam delimitando a arte dessa forma. Pois se cerceia uma luta muito importante, e a censura está do lado oposto ao que se propõe arte.
Família tradicional neurótica
Em contrapartida, como ocorre em qualquer tempo da história, cresce também um movimento conservador com viés fanático religioso (e que de nada tem de religioso, e que de nada se sabe da histórias da religiões ou de fé individual e intransferível) que tem como objetivo usar subterfúgios absolutamente cruéis por meio da religião (O Futuro de uma Ilusão, Freud) para punir cada vez mais esses pequenos direitos conquistados em nome de uma família “feliz, infeliz” e de um fake Deus onipresente e que está a todo tempo com o chicote nas mãos.
O que quer uma mulher? Não ser colonizada pelo olhar do Outro. Desejo requer fartura.Como uma mulher ousa desejar? Qual ferramenta dispõe? O preço é altíssimo. Será que se pode continuar no mercado formal de trabalho? Será que se pode amar e ser amada? Será que se pode levantar da mesa e garantir a sua integridade física e simbólica?
* Vanessa Alves é jornalista, escritora e roteirista. Pesquisa erotismo, corpo, linguagem e sociedade. Autora dos livros Peguei meu coração e comi e Anônima (romance de autoficção erótico, editora Telha) participou de antologias e festivais literários no Brasil e em Portugal. Realiza intervenções artísticas em teatros, espaços culturais e plataformas na internet. Sua obra está vinculada ao autorretrato cru e contemporâneo que produz.