Neste artigo, procuro compartilhar algumas reflexões que atravessam o livro Mar de palavras-chave: domínio e estranhamento em relação à língua portuguesa, publicado pela Mercado de Letras, e que é resultado da minha tese de doutorado. A obra nasce da inquietação sobre como nos relacionamos com a língua, ora buscando dominá-la, ora sendo por ela conduzidos.
Clique aqui para fazer parte da comunidade de OVALE no WhatsApp e receber notícias em primeira mão. E clique aqui para participar também do canal de OVALE no WhatsApp
A pergunta do títulonos costuma aparecer “em horinhas de descuido”, quando não estamos tão preocupados com as ocupações do cotidiano. Isso talvez porque ela implique um certo olhar diferente a respeito de algo ao qual já estamos habituados. Desde pequenos.
Nos bancos escolares, muitas vezes nos acostumamos a nos sentir emfalta em relação à Língua Portuguesa. E essa falta vai nos parecer ainda maior quando, mais tarde, em anúncios de emprego, lemos uma exigência bastante comum para o candidato: “É necessário ter domínio da língua portuguesa”. A menção a essa qualificação em relação à nossa língua costuma tornar a vaga ainda mais inatingível aos olhos do candidato. Quem teria o pleno domínio da língua além de Machado de Assis, Guimarães Rosa e outros escritores? Certamente não o desamparado aspirante ao emprego.
No entanto, se pensarmos pelo viés da psicanálise e da análise do discurso, poderíamos trazer algum alento diante dessa exigência: ninguém tem pleno domínio da língua. É ela que nos constitui feito um tijolo, é ela que nos constrói enquanto sujeitos e que também nos assujeita. Só conseguimos receber o mundo e falar sobre ele por meio dela. Entretanto, a exigência de domínio da língua permeia muitas das relações sociais, entre elas, as do mercado. Em compensação, a noção de que esse domínio é ilusório, pode fazer com que pensemos sobre a língua com menos limites, menos medo e mais vontade de conhecê-la.
Foi dessa forma, aliás, que comecei meu caminho de pesquisa no Doutorado. Esse trabalho teve início a partir de um momento em que senti uma sensação de “estranho familiar”, de estranhamento em relação ao contexto em que a língua é ensinada e vivida em nosso cotidiano. Muitas vezes “aceitamos” as palavras e expressões como elas aparecem para nós, não as estranhamos e, justamente assim, mas não só, somos assujeitados à língua.
Atualmente, a expressão um “lápis cor de pele” vem - ainda bem – sendo contestada por meio dos movimentos sociais e pela discussão sobre os preconceitos raciais. Porém, antes a tomávamossem o menor constrangimento, como algo familiar. E assim, éramos conduzidos por uma historicidade escravocrata quefrequentementeainda insiste em nos dominar.
Muitos também não estranham quando alguém diz: “Fulano foi uma ótima aquisição da empresa”, ou “Esse creme anti-idade é maravilhoso”.Muitas vezes não se percebe que essas expressões induzem à ideia de que uma pessoa pode ser “adquirida” ou de que se pode parar o tempo. Neste último caso, ilusão necessária para que o mercado nos faça continuar a consumir.
Foi por começar a estranhar a língua e a desacreditar de nossa capacidade – imaginária, autocomplacente e enganosa - de domínio sobre ela,que comecei a desconfiar das formações discursivas que nos são apresentadas normalmente como verdade patente. Nós dominamos a língua ou somos por ela direcionados?
É em tornodessa pergunta que escrevi meu livro, pensando sobre ela como alguém que segue de olhos abertos em meio a um caminho ainda escuro.