OPINIÃO

A dor invisível de quem se doa por inteiro


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Ela acorda todos os dias às 5h, prepara a medicação, ajuda a mãe a levantar, dá banho, alimenta, troca fraldas e depois tenta, entre suspiros e silêncios, lembrar-se de si mesma. O nome dela poderia ser Maria, Ana, Janaína ou qualquer outro nome comum. Ela é uma entre milhões de brasileiros que cuidam de um familiar dependente sem receber nada além do desgaste físico, mental e emocional. E muitas vezes, nem um “obrigado”.

No Brasil, os cuidadores familiares são uma força silenciosa que sustenta, no peito e na raça, parte significativa da assistência à saúde. Em sua maioria, são mulheres, mães, filhas, esposas, sobrinhas — mulheres que abandonaram ou postergaram suas vidas, seus empregos, suas relações, suas vontades, para cuidar de alguém que precisa.

O que poucos sabem — ou preferem não ver — é o custo brutal dessa entrega. O preço pago por quem cuida muitas vezes é invisível aos olhos do sistema de saúde, do Estado, das famílias e da sociedade. É sobre esse custo humano, silencioso e profundo que vou falar.

O termo “cuidador familiar” se refere àquela pessoa que, sem formação profissional específica, dedica parte significativa de seu tempo — ou toda a sua vida — ao cuidado de um parente que necessita de assistência contínua. Pode ser um idoso com demência, um filho com deficiência, um cônjuge com doença crônica ou degenerativa, ou até mesmo um irmão acamado após um acidente.

Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), estima-se que mais de 6 milhões de pessoas dependem de cuidados contínuos em domicílio no Brasil. E a maior parte desse cuidado é feita por familiares não remunerados.

O perfil típico do cuidador familiar brasileiro é de uma mulher entre 40 e 60 anos, com baixa escolaridade, renda familiar inferior a dois salários mínimos e que interrompeu ou flexibilizou sua vida profissional para assumir o papel de cuidadora. Em muitos casos, ela cuida sozinha. Em outros, divide-se entre o cuidado, um emprego de baixa remuneração e a manutenção da casa.

De acordo com o estudo “Quem cuida de quem cuida?”, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 72% dos cuidadores familiares no Brasil são mulheres, e mais da metade afirma não receber apoio algum, nem da família nem do Estado.

Cuidar de alguém é, muitas vezes, abrir mão de si. E isso não se faz sem dor. A pessoa cuidadora passa, gradualmente, por um processo de apagamento de identidade: deixa de ser a profissional, a amiga, a parceira, a sonhadora, a mulher — para ser apenas "a filha que cuida", "a esposa que acompanha", "a mãe que não pode sair de casa".

Muitos cuidadores relatam a experiência de estarem sozinhos mesmo cercados por familiares. O sentimento de abandono, de que as demais pessoas “passaram a responsabilidade adiante”, é comum. E mais cruel ainda é quando, ao adoecer ou manifestar sinais de exaustão, o cuidador é julgado — “está nervoso demais”, “está reclamando sem motivo”, “ninguém mandou assumir”.
Esse tipo de dinâmica familiar desgasta vínculos, cria ressentimentos e, em muitos casos, provoca rupturas emocionais que se estendem por anos, mesmo após o fim do período de cuidado.

O cuidado como ato de amor, mas também de resistência

É preciso romper com o discurso romantizado de que “cuidar é um dom”, ou “é um ato de amor incondicional”. Embora o amor esteja presente, o cuidado é também um trabalho pesado, diário, exaustivo — e, portanto, deve ser reconhecido como tal.

Cuidar de alguém não significa deixar de existir. E permitir que o cuidador adoeça é, no fim, permitir que a estrutura toda entre em colapso.

O dia depois: quem cuida do cuidador quando tudo termina?

Uma dor quase nunca falada é o vazio pós-cuidado. Quando o familiar morre ou melhora e o cuidador “fica livre”, nem sempre há alívio. Muitos não sabem o que fazer com a própria vida. Sem renda, sem qualificação atualizada, sem identidade individual, sem vínculos afetivos — restam a depressão, a insegurança e o luto duplo: da perda do outro e da própria história. Ninguém segura o mundo sozinho

O ato de cuidar é um gesto humano profundo. Mas não pode ser romantizado. Cuidar, quando feito em isolamento e sem apoio, adoece, destrói e apaga. O cuidador familiar precisa ser reconhecido como sujeito de direitos, não apenas como suporte alheio.

É urgente criar políticas públicas que não apenas reconheçam, mas protejam e amparem essas pessoas. Afinal, se quem cuida quebrar, o cuidado acaba. E junto com ele, parte da dignidade de quem precisa ser cuidado também desaparece.


Edvaldo de Toledo é empresário, enfermeiro, especialista em Gerontologia e Geriatria, Apresentador do IssoPodAjudar, Criador da Cuidare e Diretor de Saúde do Município de Pedra Bela (@edvaldo.toledo)

Comentários

1 Comentários

  • Marta Vieira 06/08/2025
    Eu já fui uma cuidadora, cuidei da minha sogra por três anos, ela tinha câncer, na época tive até depressão, logo em seguida meu casamento acabou, hoje conseguir ser outra mulher, terminei os estudos, fiz faculdade de pedagogia, hoje não trabalho na minha área, mas faço o que gosto, moro em um sítio em Pedra Bela, sou realizada, feliz por me libertar das minhas frustração e grata por ter conseguido cuidar um pouco da minha sogra, que era muito querida por mim!!!