NOSSAS LETRAS

‘Um defeito de cor’

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 6 min

(Neste oito de março, data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, rendo aqui minhas homenagens à escritora mineira Ana Maria Gonçalves, que pelas vias da ficção e pesquisa mostrou aos leitores de ‘Um defeito de cor’ os desafios gigantescos, as desumanidades indizíveis e os preconceitos medonhos suportados por Kehinde, protagonista inspirada em Luísa Mahim, figura histórica e mãe do abolicionista Luís Gama. Como outras mulheres de seu tempo, elas não esmoreceram e resistiram até o fim de suas vidas lutando contra a violência _sempre maior quando se é preta e pobre no Brasil, e ainda).

Há livros que lemos de enfiada, num só fôlego, em ritmo que não demanda pausas. Não é o caso de ‘Um defeito de cor’, escrito pela mineira Ana Maria Gonçalves. Junto a Conceição Evaristo, Jeferson Tenório Gonçalves, Itamar Vieira Junior, Carlos de Assumpção e outros ela compõe o grupo de proeminentes escritores negros que ganharam notoriedade nos últimos anos. 

Exemplar em mãos, não é estranho que alguns digam: ‘um tijolão’, ou que outros comentem: ‘que calhamaço!’ Afinal, trata-se de romance de mil páginas. Enredo da Portela no Carnaval 2024, o livro já está em sua 42ª edição sob a chancela do Grupo Editorial Record, que detém os direitos de publicação. Lançado em 2006, no ano seguinte conquistou o prestigioso prêmio ‘Casa de Las Américas’ e vendeu até agora mais de 100 mil exemplares, algo extraordinário em nosso país que perdeu entre 2019 e 2024 mais de seis milhões de leitores, segundo a última pesquisa ‘Retratos da Leitura no Brasil’ publicada há quatro semanas.

Vamos ao enredo. Sequestrada por mercadores de gente no reino africano de Daomé (hoje república do Benim), a menina Kehinde, seis anos, chega ao Brasil num navio tumbeiro. Vendida na Bahia a um dono de terras, suporta constantes situações de sofrimentos físicos, psíquicos e morais. No início da adolescência é estuprada por seu ‘sinhô’, de quem tem um filho que morre ainda criança. Mais tarde torna-se mãe de outro menino, cujo pai, comerciante português falido, o vende como mercadoria. Muito tempo depois, graças a singular espírito empreendedor, ela consegue comprar sua alforria. Retorna à África, onde se reúne a uma comunidade formada por ex-escravizados. Conhece vários homens e com um deles, de ascendência inglesa, tem um casal de gêmeos. Com filhos adultos, avó de várias crianças, ainda lúcida mas cega, decide retornar ao Brasil em busca do ‘menino’ perdido, vendido pelo pai. Empreende então viagem acompanhada por jovem amiga a quem dita as cartas que deseja fazer chegar ao filho, caso não o reencontre.

Nas cartas que formam o próprio livro, Kehinde revisita suas dores de escrava desde que raptada na aldeia de Uidá; fala das crenças de raiz africana que a haviam confortado nos momentos mais cruciais; narra a vida nas senzalas e nos pequenos núcleos urbanos que começavam a se formar na Bahia; descreve os movimentos antiescravagistas marcados pela coragem dos oprimidos e impiedade dos opressores. Estes aspectos são notáveis pelo que revelam da pesquisa na qual mergulhou a Autora nos cinco anos em que esteve recolhida à Ilha de Itaparica. Grande parte do romance se constrói com base em documentos históricos que contextualizam episódios que deveriam nos envergonhar como nação e nos deixar em dívida eterna com os pretos. 

Muitos leitores e críticos veem semelhanças entre a vida da protagonista e a de uma figura histórica, Luísa Mahin, heroína da Revolta dos Malês, movimento de escravizados que irrompeu na Bahia em 1835. Luísa (o mesmo nome cristão imposto a Kehinde pela igreja católica na chegada a Salvador) foi mãe do abolicionista Luís Gama. Raptada na Costa da Mina e aqui escravizada, teve o filho, nascido em 1830, vendido pelo próprio pai português afundado em dívidas. Para a escritora, as semelhanças não são meras coincidências e seu livro é ‘uma história real romanceada’. Luísa Mahin tornou-se símbolo da resistência das mulheres pretas no Brasil e por isso ao construir sua narrativa a Autora quis contar história semelhante à de outras mulheres que ‘tiveram um papel importantíssimo durante a escravidão. Não se tem quase nada de informações sobre elas, nem no Brasil nem na África”, disse ao jornal Estado de São Paulo em 2007, pouco depois do lançamento do livro.

Vozes recorrentes vêm atestando a importância desta obra que resgata a memória coletiva afro-brasileira enquanto relata as peripécias vividas pela protagonista ameaçada o tempo todo por perigos que a levam a se movimentar, a resistir, a se reinventar diante da realidade que não lhe concede nenhuma trégua, pausa, descanso. Talvez seja oportuno associar à Kehinde a imagem do camaleão que ganha novas formas conforme mudam os espaços geográficos. No caso dela, também os culturais, políticos e linguísticos.

Aliás, no plano semântico há toda uma análise a ser empreendida a partir dos nomes próprios que povoam o livro- são mais de 400 personagens! Os dos gêmeos (Ibêjis, em iorubá), vários na narrativa, são especialmente representativos da ambivalência, da duplicidade, da divisão, do duplo e da diáspora:  Kehinde significa ‘a que veio depois’ em relação à irmã Taiwo, ‘a que chegou primeiro’. Todos os nomes exibem poeticidade e passear por eles pode oferecer oportunidade para novas leituras agregadoras. Kokumo significa ‘não morrerás mais, os deuses te segurarão’; Dúróorfike, ‘fique, tu serás mimada’; Babarunde, ‘o que nasce depois da morte do avô’; Titylayo, ‘felicidade eterna’; Ayode, ‘a alegria vem para o lar”; Dúrójaivé, ‘fica para gozar a vida, nós de imploramos”; Abiku, ‘nascido para morrer’. Etc. 

Ainda no âmbito do idioma igbo, o da narradora em primeira pessoa, são também dignos de nota os provérbios africanos que abrem cada um dos dez capítulos. Destaco cinco: ‘A borboleta que esbarra em espinhos rasga as próprias asas.’ ‘Mesmo o leito seco de um rio guarda seu nome.’ ‘A sola do pé conhece toda a sujeira da estrada.’ ‘Aquele que tenta sacudir o tronco de uma árvore sacode somente a si mesmo.’ ‘Quando não sabes para onde ir, olha para trás e saiba ao menos de onde vens.’

Para os que se sentem curiosos em relação ao título do livro, a expressão ‘defeito de cor’ refere-se a conceito que vigorou no século XIX com base em tese naturalista, segundo a qual indígenas e negros traziam em sua constituição biológica um defeito que lhes conferia não só pele diferente da do europeu como também pouca inteligência. Assim, pretos que postulassem cargos na administração pública ou nas fileiras do clero, deveriam enviar carta ao imperador Pedro II pedindo-lhe que os desculpassem por sua cor. Numa passagem do romance, uma personagem sente-se aliviada porque um de seus filhos, tendo nascido com pele mais clara, talvez fosse isentado de tal documento.

‘Um defeito de cor’ nos mostra tanto o lento processo histórico que culminou na Abolição mas não acabou com o estigma, como o sofrimento ao qual os escravizados eram submetidos e cuja descrição obriga o leitor a muitas reflexões sobre a abjeta crueldade da colonização. Há páginas tão chocantes que pedem um tempo para que possamos respirar, digeri-las em sua verdade incontestável, e então prosseguir. Enfim, mesclando ficção e realidade, Ana Maria Gonçalves constrói obra onde resgata e reelabora a memória da escravidão, cujos efeitos diretos ou colaterais perduram em nosso País.

Considerado pelo jornal Folha de São Paulo um dos 200 livros mais importantes para entender o Brasil, sua leitura é essencial para quem pretende conhecer as origens de diversos elementos que compõem a miscigenada cultura brasileira, ainda carente de maior discernimento. Saber de onde viemos é fundamental para definir os caminhos que devemos construir no presente, este tempo onde, disse Guimarães Rosa, ‘escrevemos os futuros antanhos.’ 

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