PARA REFLETIR

Gladiador 2: o inferno da alienação ou o céu da reflexão?

Por Francisco Estefogo | Taubaté
| Tempo de leitura: 4 min
Docente da Universidade de Taubaté e da FATEC-Taubaté. Também é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e na PUCSP

“As portas do inferno estão abertas noite e dia;/Suave a descida, e fácil é o caminho”, entoa Lucius, protagonista do filme Gladiador II, dirigido por Ridley Scott. Esses são alguns dos versos do épico poema A Eneida, Livro 6, escrito em latim por Virgílio, poeta italiano do século I a.C. Em linhas gerais, retrata a saga de Enéas, um troiano sobrevivente da Guerra de Troia, e sua importância nas origens da fundação de Roma. Ao transportar a mensagem desses fragmentos literários, atemporais em relação à existência humana, para os dias de hoje, é possível vislumbrar imagens vívidas de situações contemporâneas análogas a esse lugar de tormento e sofrimento, com pronto acesso livre a todos, sem restrições. Atravessado por desigualdades sociais, degradações ambientais e, particularmente por extremismos ideológicos alienantes, o mundo moderno pode tranquilamente nos conduzir às profundezas das trevas mais funestas com possibilidades de nos cegar e, consequentemente, limitar a nossa visão em relação à realidade nua e crua. 

O calvário infernal de Virgílio ressoa em concepções de pensadores como Marx (1818-1883), filósofo alemão, que descreveu a alienação do trabalho no capitalismo como um estado de desumanização. Na hodiernidade, a ausência de dificuldades na jornada aos “quintos” se manifesta em sociedades que, por exemplo, privilegiam o consumo desenfreado, o lucro acima da vida e a exploração dos recursos naturais, dentre outros martírios, ao desdenhar, por exemplo, dos limites ecológicos do planeta. Como Marx aduz, as forças de produção, embora potencialmente emancipadoras, frequentemente se tornam instrumentos de opressão. No mais, o “eldorado perene de felicidade” cotidianamente expostos nas redes sociais é um outro escancarado portal para “o lar do tinhoso”. Do outro lado do espectro flamejante, a considerar as proposições de Frantz Fanon (1925-1961), filósofo martinicano, a descida ao inferno poderia ser compreendida pela perspectiva colonial. De acordo com Fanon, além de destruir culturas, o colonialismo desfigurou a psique dos colonizados, ao produzir um "inferno" psicológico e social. O pensador descreve o eloquente fardo de viver sob um sistema que inconscientemente pode desumanizar, cuja descida ao abismo para opressão racial é um processo sistemático, deliberado e alienante.

Na contramão, o retorno ao céu, como descrito por Virgílio, mas não evocado sistematicamente por Lucius na milionária produção cinematográfica de Scott, demanda resistência, persistência, vontade e luta. Nesse terreno, Simone Weil (1909-1943), filósofa francesa, concebe o esforço em direção ao bem como uma atividade árdua, comparável a uma missão espiritual que exige atenção e sacrifício. Weil argumenta que, diante do sofrimento humano, o papel do sujeito é resistir à tentação de sucumbir às seduções do capital, à indiferença e ao desespero. Nessa toada, no pensamento africano, a ideia de regresso à luz encontra ressonância na filosofia de Ng?g? wa Thiong’o, professor universitário e dramaturgo queniano, que entende a decolonização da mente como um passo essencial para a reflexão, a desalienação e a liberdade. Ng?g? aponta que a recuperação da dignidade e da identidade cultural é uma forma de emergir do "inferno" colonial para um futuro mais humano e iluminado. Essa tarefa, ainda que difícil, é fundamental para romper com as estruturas opressoras hodiernas.

Hoje, o "inferno" descrito por Virgílio pode ser refletido nas crises interligadas da modernidade: o colapso climático, a ascensão do extremismo ideológico e a desigualdade global, para citar apenas alguns tormentos vigentes. A crise ambiental, por exemplo, enseja argumentos referentes ao fato de que a descida a esse submundo é decorrente de um modelo de desenvolvimento insustentável, como evidenciado por autores como Vandana Shiva. Entre outras considerações, a filósofa indiana denuncia o impacto do capitalismo global no ecossistema e nas comunidades indígenas. Ademais, pensadoras como Angela Davis destacam que a volta ao céu requer movimentos coletivos. Para além de resistir, Davis insiste que a luta pela justiça racial e social é uma questão de reimaginar estruturas inteiras de poder, trabalho e cuidado com o outro e com a Terra. A reflexão de Virgílio, nesse contexto, é um alerta para os grandes desafios concernentes à reconstrução de um mundo baseado na reflexão, na solidariedade, na igualdade e no respeito ao planeta.

Virgílio nos remete que, devido ao fato de as portas do inferno estarem sempre abertas, a retomada aos esteios iluminados exige esforço monumental. Esse empenho pode ser compreendido como uma busca pela humanidade perdida, seja pela superação da alienação capitalista, pela decolonização das mentes extremistas ou pela recuperação do equilíbrio ecológico. Em última análise, o retorno ao céu não é apenas uma questão de sobrevivência individual, mas de ação coletiva. Como Paulo Freire (1921-1997), educador e filósofo brasileiro, observou, a liberdade nunca é dada, mas conquistada por meio de diálogos e ações transformadoras. Assim, no hercúleo exercício de voltar ao céu novamente, somos chamados a resistir às forças que nos arrastam para os confins ardilosos da perdição em chamas alienantes, além de construir caminhos alternativos. Mesmo que custoso, trata-se de um afazer verdadeiramente reflexivo e potente, que pode ecoar em cada tempo e em cada ato solidário consciente.

*Membro da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é docente da Universidade de Taubaté e da FATEC-Taubaté. Também é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e na PUCSP.

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