
O debate sobre gênero tornou-se um dos temas mais urgentes e polarizadores da contemporaneidade. Ele representa a luta legítima por respeito, reconhecimento e inclusão, mas também escancara a fragilidade de nossas sociedades ao lidar com diferenças. Em vez de promover entendimento e empatia, as narrativas que dominam essa discussão frequentemente intensificam a fragmentação social, tornando ainda mais insano o momento político e cultural em que vivemos. Entre a cartilha progressista da esquerda brasileira e a pauta moralista da direita global, representada por figuras como Donald Trump, o que se perde é o essencial: o respeito às culturas e às experiências humanas como o único caminho para a paz.
Historicamente, as questões de gênero sempre foram complexas e enraizadas em contextos culturais específicos. Culturas indígenas, africanas e asiáticas, por exemplo, reconheceram por séculos expressões de gênero que ultrapassam a binariedade masculino/feminino. No entanto, com a colonização e a disseminação de valores eurocêntricos, essas diversidades foram suprimidas em nome de uma “ordem natural”. O que vemos hoje é, em grande parte, uma tentativa de recuperar essa pluralidade. Mas essa luta, que deveria ser libertadora, tem sido sequestrada por discursos que muitas vezes abandonam o diálogo em prol de imposições unilaterais.
O erro fundamental está na tentativa de transformar a riqueza das experiências de gênero em narrativas homogêneas e incontestáveis. Em vez de respeitar a diversidade cultural e as diferenças individuais, vemos uma insistência em categorizar e normatizar o que, por definição, é fluido e subjetivo. Isso não apenas reduz a complexidade humana, mas também cria novas formas de exclusão. Pessoas que não se encaixam completamente em termos como “não-binário” ou “aporagênero”, por exemplo, podem se sentir marginalizadas até mesmo em espaços que pregam inclusão. A obsessão por rotular e controlar gera o oposto do que se busca: mais conflito, mais fragmentação, menos paz.
Socialmente, essa rigidez discursiva é amplificada pela polarização política. A direita moralista, liderada por figuras como Trump, explora o medo do desconhecido e a nostalgia por um passado idealizado para justificar políticas excludentes e retrógradas. Já a esquerda progressista, especialmente no Brasil, muitas vezes transforma pautas legítimas em dogmas, criando um ambiente onde qualquer discordância é imediatamente rotulada como preconceito ou intolerância. Ambos os lados falham em promover o diálogo e o entendimento, preferindo reforçar divisões que só beneficiam líderes populistas.
O populismo cultural, que é uma ferramenta eficaz tanto para a esquerda quanto para a direita, utiliza a pauta de costumes como arma para desviar o foco de questões estruturais mais urgentes. Enquanto debates acalorados sobre banheiros, pronomes e identidades tomam o centro do palco, temas como desigualdade econômica, acesso à saúde e educação são relegados a segundo plano. Isso não significa que as questões de gênero sejam irrelevantes, mas sim que elas estão sendo manipuladas para servir a agendas políticas que, no fundo, pouco se importam com a diversidade ou a inclusão.
Do ponto de vista psicológico e cultural, essa polarização cria um ambiente de tensão constante. O ser humano, por natureza, busca pertencimento e harmonia social. Quando o debate público é dominado por narrativas que exigem adesão incondicional a determinados discursos, muitos optam pelo silêncio ou pela conformidade superficial. Esse medo de represálias — seja da direita conservadora ou da esquerda progressista — sufoca o pensamento crítico e transforma a liberdade de expressão em uma ilusão.
O respeito às culturas e às diferenças é o único caminho para a paz. E esse respeito não pode ser imposto; ele deve ser construído por meio do diálogo honesto, da escuta ativa e do reconhecimento de que nenhuma narrativa, por mais bem-intencionada que seja, detém o monopólio da verdade. Ao insistir em impor uma visão unificada de gênero ou em usar a pauta de costumes como arma política, tanto a direita quanto a esquerda contribuem para o caos social que enfrentamos.
No cenário global, a reeleição de Donald Trump, é um reflexo dessa insatisfação crescente. Sua retórica anti-inclusiva, alimentada por um nacionalismo agressivo, encontra eco em uma parcela da população que se sente excluída ou atacada pelas narrativas progressistas. No Brasil, a esquerda não tem sido capaz de construir uma alternativa convincente, frequentemente caindo na armadilha de transformar pautas identitárias em sua única bandeira, ignorando as complexidades culturais do país.
Superar essa crise exige coragem para reconhecer os erros de todos os lados. A direita precisa abandonar seu apego a um passado idealizado que nunca foi inclusivo ou justo. A esquerda, por sua vez, precisa aprender a equilibrar a defesa das minorias com o respeito às tradições culturais e à pluralidade de opiniões. E, acima de tudo, ambos os lados precisam parar de usar o gênero — e outras questões identitárias — como armas em uma guerra ideológica.
A verdadeira inclusão só será possível quando entendermos que a diversidade não é uma ameaça, mas uma riqueza. Isso significa aceitar que culturas têm maneiras diferentes de entender gênero, que pessoas têm experiências únicas e que o diálogo, por mais desconfortável que seja, é sempre mais produtivo do que a imposição. O respeito às culturas não deve ser uma concessão ou um compromisso político; ele deve ser a base de qualquer sociedade que aspire à paz.
O momento atual exige mais do que narrativas fáceis ou soluções simplistas. Ele exige líderes que tenham a coragem de enfrentar a complexidade da condição humana com humildade, que rejeitem o populismo e que promovam a convivência pacífica entre diferenças. Apenas assim poderemos superar a insanidade do presente e construir um futuro onde a liberdade e o respeito sejam mais do que palavras — sejam realidades vividas por todos.
Fabrício Correia é escritor, historiador, licenciado em Geografia, professor universitário com especialização em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão. Coordenou a primeira cátedra de Diversidade, na UNISE-PR.