O Globo de Ouro conquistado pela atriz Fernanda Torres pela atuação no filme “Ainda estou aqui” é muito mais do que o sucesso de uma atriz que surpreende Hollywood. É a vitória da democracia contra a barbárie. É a vitória de Eunice Paiva, que entre “Marias e Clarisses” viveu os anos de chumbo assistindo famílias, como a dela, sendo dilaceradas pela truculência do regime militar.
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A filmografia, para além de promover o entretenimento, tem o papel de resgatar a história de um povo, de uma civilização. Os filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, é o grito de alerta contra os radicalismos à direita e à esquerda que insistem em sobreviver no século 21. Por isso, a cultura é tão rechaçada pelos candidatos a ditadores.
O Brasil precisava desse reencontro com a sua história. Passamos por um período sombrio em que se tentou normalizar o regime de exceção, a tortura e a perseguição política. A angústia que isso causou nos verdadeiros democratas só foi superada com o fim do governo Bolsonaro. A divisão radicalizada da sociedade brasileira entre direita e esquerda, tem raízes que precisa ser aclarada para também não ficar atacando somente um lado. Primeiro foi o projeto hegemônico do PSDB de Fernando Henrique, produzido para durar 25 anos, que foi a pique no final de oito anos. Em seguida, foi a hegemonia petista que já estava a se consolidar num processo de 16 anos de poder, se Dilma Rousseff não tivesse sofrido impeachment. E naquele processo turbulento, é preciso que se diga que a primeira figura pública a criar essa cisão na sociedade brasileira foi Lula da Silva, quando cunhou a expressão “nós contra eles”. Quem era nós, e quem era eles, ficava sempre a dúvida. O fato é que na reeleição de Dilma, a sociedade brasileira, exausta do governo petista, assistiu a fratura do processo democrático com o uso da máquina pública para a manutenção do projeto de poder do PT. Daí para diante, a crise se intensificou e o Brasil assistiu, mais uma vez, o rompimento da linha tênue do Estado Democrático de Direito. Daí para a Lava Jato e suas excrescências foi um pulo, até a eleição de uma figura caótica que sempre teve prazer no sofrimento como o que foi infligido à família Paiva.
Voltando ao filme, ele não só revela um Brasil nada cordial, bruto, covarde e desalmado, ele nos faz rememorar toda a luta que nos trouxe até aqui: nosso maior período de normalidade democrática. Quem assiste ao filme, não tem como não lembrar da Anistia e da volta do irmão do Henfil, entre tantas figuras públicas; das Diretas Já, quando a sociedade brasileira foi às ruas em 1983 e 1984 lutando pela volta da democracia em todos os níveis; pela eleição de um operário para a Presidência da República. O Brasil respirou esperança, viveu a liberdade de expressão e se tornou mais complexo com os novos grupos sociais emergindo numa nova sociedade, que Philip Kotler classifica como a nova configuração social quando trata do marketing holístico.
O mundo hoje vive uma crise democrática. Autocratas mundo afora souberam ler com agilidade os novos meios de informação de uma sociedade hiper conectada, quebrando a hegemonia da comunicação de massa (um para todos) para se abrigar nas redes sociais numa comunicação por vezes caótica (todos para todos). Enquanto os democratas foram absorvidos pela burocracia do estado priorizando a democracia representativa, autocratas estabeleceram gigantescas comunidades na internet empoderando o cidadão num debate político conservador e moralista. O resultado é que a pseudoliberdade combate a democracia.
O mundo anda muito estranho. A liberdade das redes permite que haja comunidades que defendam a tortura, o nazismo, o ataque frontal às minorias, em última análise ao uso da violência, não como instrumento monopolizado pelo Estado, mas como recurso individual na defesa do interesse por vezes difuso. A liberdade de hoje permite que imigrantes aplaudam a proposta do presidente eleito Donald Trump de deportar imigrantes. A violência é a antítese da democracia. Isso porque a democracia trabalha nos consensos, sem subjugar quem eventualmente teve seu argumento vencido.
Ainda estamos aqui democracia! A luta pela democracia, que hoje não é mais uma luta do Brasil, mas uma luta transnacional, é o desafio de restaurar os valores primeiros da democracia moderna que permitiu ao mundo a maior evolução civilizatória da história, ocorrida no século 20. E a vitória de Fernanda Torres é um grito de alerta que nos faz compreender que, mesmo diante de tantas imperfeições, o regime democrático é o melhor caminho para a construção de uma sociedade fraterna e moderna.