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MP investiga contrato do Hospital Público Veterinário de Taubaté

Por Julio Codazzi | Taubaté
| Tempo de leitura: 9 min
Divulgação/PMT
Unidade foi inaugurada em maio de 2022
Unidade foi inaugurada em maio de 2022

O Ministério Público instaurou inquérito para apurar possíveis irregularidades no chamamento público promovido pela Prefeitura de Taubaté em 2022 que resultou na contratação da Anclivepa (Associação Nacional de Clínicos Veterinários de Pequenos Animais) para implantar e operar o Hospital Público Veterinário do município.

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Feita em março de 2024, a denúncia aponta suposto direcionamento do processo para beneficiar a Anclivepa, que firmou contrato em maio daquele ano no valor de R$ 3,415 milhões a cada 12 meses - o contrato, que segue vigente, tem custo anual hoje de R$ 3,153 milhões, já que os gastos para implantar a unidade ocorreram apenas em 2022.

A Prefeitura nega qualquer irregularidade, mas não se manifestou sobre os principais pontos da denúncia. Já os responsáveis pela associação não se pronunciaram (leia mais abaixo).

A denúncia foi feita ao MP por uma servidora de carreira da própria Prefeitura, que está licenciada para disputar as eleições desse ano. Ana Paula Zarbietti é pré-candidata a vereadora pelo PSD, partido que integrará a coligação do ex-prefeito Ortiz Junior (Republicanos), que é adversário político do atual prefeito, José Saud (PP).

Direcionamento.

Um dos pontos centrais da denúncia para embasar a suspeita de direcionamento é que os três orçamentos solicitados pela Prefeitura na fase de elaboração do edital foram pedidos a entidades com sócios em comum, todas com sede na cidade de São Paulo.

Um dos orçamentos foi solicitado pela Semabea (Secretaria de Meio Ambiente e Bem-Estar Animal) à própria Anclivepa, que tinha como diretor administrativo financeiro o veterinário Wilson Grassi Junior. A cotação foi assinada pela gerente de projetos da associação, Juliana Dalpicolo do Couto Rosa, que é sócia de Grassi Junior em outra empresa, a Televet Servicos Veterinarios.

Outro orçamento foi solicitado à SPMV (Sociedade Paulista de Medicina Veterinária), que tem como presidente Wilson Grassi Junior. Foi o próprio veterinário quem assinou a cotação.

Também foi solicitado um orçamento ao Centro Veterinário Zona Leste. No sistema da Receita Federal, por exemplo, o e-mail registrado dessa empresa é o endereço eletrônico pessoal de Grassi Junior. Em um site de reclamações, foi o perfil do próprio veterinário que respondeu em nome da empresa. O Centro Veterinário Zona Leste está registrado em nome de Marcelo Franco Fernandes, que em 2020 assumiu outra empresa, o Centro Veterinário Pet Sena, que Grassi Junior havia criado em 2019 - as duas empresas funcionam hoje no mesmo endereço. Além disso, a cotação enviada pelo Centro Veterinário Zona Leste à Prefeitura de Taubaté foi assinada pela então coordenadora administrativa da empresa, Samanta Pranzo, que é uma das sócias do hospital veterinário mantido pela Anclivepa em João Pessoa (PB).

Edital.

Outro ponto citado na denúncia para embasar o suposto direcionamento foi uma cláusula do edital que exigia que a OSC (Organização da Sociedade Civil) interessada na disputa comprovasse já ter prestado esse tipo de serviço (a implantação e a operação de um hospital veterinário) em contratos com outros órgãos públicos.

Na época, esse ponto do edital foi alvo de duas impugnações - uma do veterinário Marcos Yoshikasu Tsuji e outra da Associação dos Médicos Veterinários e Zootecnistas do Vale do Paraíba. Ambas diziam que apenas uma entidade em todo o país seria capaz de atender essa exigência. No entanto, as impugnações foram rejeitadas pela Prefeitura.

Procurados pela reportagem, tanto Tsuji quanto a associação afirmaram que a entidade a que se referiram nas impugnações era a Anclivepa, que era conhecida nacionalmente no ramo por ter implantado os primeiros hospitais veterinários públicos do país - o primeiro foi em São Paulo, em 2012, e hoje seriam pelo menos 10 espalhados pelo Brasil.

"Na época, pelo que sabia, só existia a Anclivepa mesmo como gestora de hospitais públicos veterinários no Brasil. Não temos experiência com hospital público, mas temos experiência com hospital particular. O que seria feito lá, nós sabemos fazer", afirmou Tsuji.

Aluguel.

Outro indício de irregularidade, segundo a denúncia feita ao MP, foi que embora o resultado da classificação do chamamento referente ao plano de trabalho só tenha sido publicado pela Prefeitura no dia 6 de abril de 2022, o contrato para locação do imóvel em que funciona o hospital veterinário foi assinado pela Anclivepa um dia antes, em 5 de abril.

As propostas das entidades interessadas haviam sido apresentadas no dia 1º de abril. Além da Anclivepa, participou do chamamento o GKC (Guaratinguetá Kennel Clube). O resultado da classificação foi publicado dia 6, com a desclassificação da GKC por não atingir a nota mínima necessária do plano de trabalho. Com isso, sequer foi verificado se o clube atendia à cláusula sobre já ter prestado serviço semelhante para órgãos públicos - à reportagem, o GKC admitiu que nunca implantou ou gerenciou um hospital público veterinário, mas alegou que tentaria atender a essa exigência com certificados de serviços de saúde animal prestados de forma isolada.

Apenas no dia 26 de abril a Prefeitura confirmou que a Anclivepa havia atendido todas as exigências do edital. A homologação do resultado do chamamento público ocorreu em 4 de maio. O hospital veterinário foi inaugurado no dia 28 de maio.

Wilson Grassi Junior.

Com registro ativo no CRMV-SP (Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo) desde 1995, Wilson Grassi Junior foi assessor parlamentar na Câmara de São Paulo entre 2008 e 2012, no gabinete do vereador Roberto Tripoli (PV). Deixou o Legislativo após a Anclivepa, da qual já fazia parte, ser contratada pela Prefeitura de São Paulo para implantar no bairro do Tatuapé o primeiro hospital público veterinário do país.

Grassi Junior disputou duas eleições: a primeira em 2006, a deputado estadual, pelo antigo PFL, que depois virou o DEM e, após fusão com o PSL, deu origem ao União Brasil; e a segunda em 2022, a deputado federal, pelo PV. Nessa segunda campanha, o veterinário se apresentava como o responsável pela fundação do primeiro hospital público veterinário do Brasil.

Entre as duas eleições, Grassi Junior declarou à Justiça Eleitoral uma evolução patrimonial expressiva: seus bens passaram de R$ 25 mil em 2006 para R$ 9 milhões em 2022.

Segundo apuração da reportagem, ainda em 2022, após um racha na Anclivepa, Grassi Junior deixou a associação e passou a disputar outros chamamentos públicos por meio da SPMV, da qual segue como presidente. Pela SPVM, o veterinário já inaugurou um novo hospital, em abril de 2024, em Santo André (SP).

Vereador.

Na portaria em que determinou a abertura do inquérito, o MP pediu, entre outras coisas, que a Justiça Eleitoral forneça a relação de pessoas que prestaram serviços ao vereador Douglas Carbonne (Solidariedade) na campanha eleitoral de 2016. A reportagem questionou o motivo dessa solicitação, mas a Promotoria respondeu que não comenta investigações em andamento.

Em 2021, em busca de apoio do vereador na Câmara, Saud cedeu a Carbonne o controle da então chamada Secretaria de Meio Ambiente. Em abril daquele ano, Magali Neves Rodrigues, que era chefe de gabinete do parlamentar, foi nomeada a secretária de Meio Ambiente, posto que ocupa até hoje. Márcio Andrade de Carvalho, que também era assessor de Carbonne, virou diretor da secretaria.

No fim de 2021, a pasta, que era chamada apenas de Secretaria de Meio Ambiente, ganhou o complemento de Bem-Estar Animal, contemplando a principal bandeira de Carbonne, que é a causa animal. A implantação do hospital público veterinário também era uma reivindicação antiga do parlamentar.

Como secretária e diretor da pasta, Magali Rodrigues e Márcio Carvalho assinaram os principais documentos do chamamento público, como o edital e o resultado da classificação.

Outro lado.

Questionada pela reportagem, a Prefeitura alegou que "todas as ações relacionadas ao chamamento público" e "à contratação da Anclivepa" foram "conduzidas com rigorosa observância aos princípios da legalidade, publicidade e transparência, em total conformidade com a legislação vigente".

A reportagem indagou por que a Prefeitura solicitou cotações de preço de três entidades com sócios em comum, por que as impugnações à cláusula do edital não foram acolhidas e em que data a Anclivepa foi comunicada pelo município sobre o resultado da classificação do chamamento. Sem responder diretamente nenhum desses questionamentos, a Prefeitura afirmou que "o processo foi realizado de maneira imparcial, com base em critérios técnicos e legais", que "as informações e documentos pertinentes estão sendo devidamente encaminhados ao Ministério Público" e que segue "à disposição para fornecer todos os esclarecimentos necessários".

Desde a última quinta-feira (25), a reportagem cobra um posicionamento da Anclivepa sobre a investigação do MP, mas a associação ainda não se manifestou. O espaço segue aberto.

Na última sexta-feira (26), em um primeiro contato da reportagem, Wilson Grassi Junior solicitou prazo até essa terça-feira (30) para se inteirar da investigação do MP. Nessa terça, o veterinário pediu que os questionamentos fossem enviados por e-mail (o mesmo endereço eletrônico que consta no registro do Centro Veterinário Zona Leste na Receita Federal). Após tomar ciência das perguntas feitas pelo jornal, Grassi Junior informou que não iria respondê-las.

A reportagem havia encaminhado sete questionamentos para o veterinário. As perguntas versavam sobre a participação de Grassi Junior no chamamento do hospital veterinário de Taubaté; sobre a participação do veterinário nas três entidades para as quais a Prefeitura solicitou orçamento; se ele conhecia alguém da Prefeitura de Taubaté antes do chamamento ser aberto; se ele saberia indicar outra entidade, além da Anclivepa, que atenderia todas as exigências do edital; se ele sabe por que a Anclivepa assinou o contrato para locação do imóvel antes da publicação do resultado do chamamento; e sobre a evolução patrimonial declarada entre 2006 e 2022.

Douglas Carbonne disse desconhecer o motivo pelo qual o MP solicitou informações sobre a prestação de contas de sua campanha em 2016. "A prestação de contas da Justiça Eleitoral é pública, qualquer um tem acesso. As minhas contas foram aprovadas pelo TRE [Tribunal Regional Eleitoral]", afirmou. O vereador alegou que as denúncias são "totalmente eleitorais" e que ainda antes de Saud assumir a Prefeitura já reivindicava a implantação do hospital público veterinário em Taubaté. "Eu fiz um abaixo assinado com 30 mil pessoas. A decisão de abrir o hospital não é minha, é da população".

Carbonne afirmou ainda que, antes do chamamento, não conhecia Wilson Grassi Junior pessoalmente, mas sabia do trabalho do veterinário com os hospitais públicos para animais. "Ele não é meu amigo, não tenho amizade com ele".

Juliana Dalpicolo do Couto Rosa, Marcelo Franco Fernandes e Samanta Pranzo não foram localizados pela reportagem.

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