A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 gerou um intenso debate sobre os limites da liberdade artística e o respeito aos símbolos religiosos. A representação da “Última Ceia” com drag queens, um cantor interpretando Dionísio e uma criança, embora apresentada como uma celebração da tolerância, foi vista por muitos como uma afronta aos sentimentos religiosos dos cristãos ao redor do mundo. Este episódio levanta uma questão fundamental: até que ponto a liberdade de expressão pode ser exercida sem infringir o respeito devido às crenças alheias?
A porta-voz de Paris 2024 afirmou que a intenção nunca foi desrespeitar qualquer grupo religioso, mas sim celebrar a diversidade e a tolerância. No entanto, o pedido de desculpas condicional – "Se as pessoas se ofenderam, nós realmente sentimos muito" – não foi suficiente para muitos. Esse tipo de declaração, que expressa pesar pela reação alheia em vez de pelo ato cometido, muitas vezes não é percebido como um verdadeiro pedido de desculpas. Críticas vieram de diversos setores, incluindo líderes políticos e religiosos. Jean-Luc Mélenchon, líder da extrema-esquerda francesa, questionou o propósito de arriscar ferir crentes, mesmo que não compartilhasse da crítica sobre blasfêmia. A Conferência Episcopal Francesa lamentou profundamente as cenas que considerou escárnio do cristianismo, destacando que a cerimônia deveria promover unidade e fraternidade.
A questão central é o respeito aos símbolos religiosos, que têm um significado profundo para muitas pessoas. A liberdade de expressão e artística é um valor fundamental em sociedades democráticas, mas deve ser exercida com responsabilidade. A linha entre arte e ofensa pode ser tênue, e é essencial considerar o impacto de certas representações em contextos específicos. Os organizadores da cerimônia argumentaram que a intenção era reafirmar os valores da República Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade. No entanto, a reação negativa sugere que, em vez de promover união, a performance pode ter exacerbado divisões. O respeito às crenças religiosas não deve ser visto como uma limitação à liberdade de expressão, mas como uma consideração necessária em uma sociedade pluralista.
A performance, além de ser uma releitura artística, foi uma tentativa de destacar a diversidade e a importância da comunidade LGBTQIAP+. A escolha de reinterpretar uma obra clássica como a “Última Ceia” com novos olhares é uma prática comum na arte contemporânea e reflete a busca por inclusão e representatividade. A crítica parece focar mais na identidade das pessoas envolvidas do que no ato artístico em si. As redes sociais foram inundadas com interpretações equivocadas, considerando a performance um "sacrilégio", embora a obra de Leonardo da Vinci tenha sido reinterpretada inúmeras vezes em diversas formas de mídia sem gerar tanta polêmica.
Ao refletir filosoficamente sobre esse episódio, é útil considerar os ensinamentos de filósofos como John Stuart Mill e Immanuel Kant. Mill, em sua obra "Sobre a Liberdade", argumenta que a liberdade individual deve ser limitada apenas quando interfere na liberdade dos outros. Neste contexto, a representação da “Última Ceia” pode ser vista como uma expressão artística que ultrapassa os limites da liberdade ao desrespeitar as crenças de um grupo significativo da população. Kant, por outro lado, enfatiza a importância do respeito pela dignidade humana. Ao utilizar símbolos religiosos de maneira que muitos consideram desrespeitosa, a cerimônia pode ser vista como uma falha em tratar as crenças dos outros com a dignidade e o respeito que merecem. A busca pela inclusão e tolerância, paradoxalmente, pode resultar na exclusão e na ofensa quando não se leva em consideração o impacto das ações sobre as sensibilidades dos outros.
A cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris 2024 poderia ter sido uma oportunidade para promover a união e celebrar a diversidade de maneira inclusiva e respeitosa. No entanto, ao optar por uma representação controversa, os organizadores acabaram criando divisões e ressentimentos. Em vez de avançar no diálogo sobre inclusão e tolerância, a cerimônia reforçou polarizações existentes e desperdiçou a chance de promover uma verdadeira reconciliação entre diferentes grupos.
Quando ações artísticas ou políticas desconsideram o respeito pelos símbolos e crenças alheias, perdem-se oportunidades de avançar em direção a uma sociedade mais coesa e compreensiva. O verdadeiro progresso na promoção da diversidade e da tolerância deve ser baseado no respeito mútuo e na consideração pelas sensibilidades dos outros.
Ao desconsiderar esses princípios, a cerimônia de abertura de Paris 2024 perdeu a chance de encarnar o verdadeiro espírito olímpico, que celebra a união, a amizade e o respeito entre as nações. Os anéis olímpicos simbolizam a união dos cinco continentes e a reunião pacífica dos atletas do mundo inteiro. Quando ações artísticas desrespeitam símbolos profundamente venerados, não apenas alienam segmentos significativos da população, mas também minam os próprios ideais que os Jogos Olímpicos buscam promover. Para construir uma sociedade verdadeiramente inclusiva, devemos sempre buscar equilibrar a liberdade de expressão com o respeito às crenças e valores de todos, garantindo que a tocha olímpica continue a iluminar o caminho para a união e a compreensão global.
* Fabrício Correia é historiador e professor universitário