ENTREVISTA OVALE

‘A subcultura da delinquência em Cruzeiro torna o crime um desafio’, diz delegado

Por Xandu Alves | São José dos Campos
| Tempo de leitura: 10 min
Xandu Alves / OVALE
João Paulo de Oliveira Abreu na sede do Deinter, em São José
João Paulo de Oliveira Abreu na sede do Deinter, em São José

Após assumir a Delegacia Seccional de Cruzeiro em fevereiro de 2022, após auge de matanças na cidade – 42 óbitos em 2021, maior número desde 2001 –, o delegado João Paulo de Oliveira Abreu dedicou-se a compreender a natureza da violência na cidade.

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Ele percebeu um fenômeno conhecido da criminologia: a subcultura da delinquência, que faz jovens atuarem no crime não em benefício próprio, para obter ganhos materiais, mas para impor respeito, impor uma questão de território e de status.

Em entrevista a OVALE, o delegado fala sobre o que descobriu em Cruzeiro, como tem enfrentado a onda de violência na cidade e a necessidade de uma atuação multidisciplinar para reduzir a violência.

O que o sr. percebeu estudando os crimes que ocorreram em Cruzeiro?

Sou delegado seccional de Cruzeiro há pouco mais de dois anos. Quando vim para cá, me incomodei com muitos jovens morrendo, jovens se matando e uma característica muito peculiar sobre o estava acontecendo.

Realizando um estudo sociológico, a gente consegue identificar um fenômeno já conhecido da criminologia que eu particularmente atribuo à subcultura da delinquência. São pessoas que agem e atuam não em benefício próprio, para obter ganhos materiais, mas muitas vezes simplesmente para impor respeito, impor uma questão de território.

Eram jovens em disputa violenta com outros jovens?

A gente observou esse fenômeno em Cruzeiro com muita força. São bairros de periferia ou jovens unidos ali entre eles e que entraram em rixa com outros bairros, e aí vêm cometendo crimes. Todos participam em grande parte do tráfico de drogas, mas a gente não viu uma disputa de territórios entre esses bairros.

Um bairro não vai ao outro invadir o território do outro bairro para tomar aquelas riquezas. Eles têm as culturas próprias deles, a gente observa muitas tatuagens no rosto com elementos claros de gangues, como tragédia, palhaço, cifrão, lágrima, coração na garganta. São típicos elementos que caracterizam para nós elementos de gangue, de subcultura da delinquência. É o que nós temos observado.

O governador Tarcísio de Freitas disse que o Vale é palco de disputa entre o PCC e facções criminosas do Rio de Janeiro, que tentam entrar na região e no estado. Essas facções têm influência nos jovens de Cruzeiro?

Temos os influxos de facções criminosas do Rio de Janeiro, é inegável que temos. Temos principalmente nas divisas. A Delegacia Seccional de Cruzeiro faz divisa com cidades como Resende, Angra dos Reis e Barra Mansa, que são cidades que têm a presença muito forte de facções criminosas do estado do Rio de Janeiro, mas na divisa sempre combatemos com muita efetividade.

Quando volta e meia alguém do Rio estabelecia e começava a fazer movimentação, a gente rapidamente intercedia, aprendia. Então, é isso que a gente vem observando: um fenômeno bem característico criminológico de subcultura da delinquência.

O que isso implica para a Polícia Civil?

É um grande desafio porque tem que ser desenvolvido uma política transversal. A Polícia Civil faz a parte dela da investigação, coletamos indício de autoria, materialidade, fazemos operações de prisões e de mandados de busca. A Polícia Militar faz o preventivo.

Só que nós precisamos de todos os atores sociais. Quando a gente fala de cultura, a gente tem problema de educação, familiares, religiosos, sociais. Então, toda essa gama de fatores impacta diretamente na segurança pública. Nós temos que ter esse olhar multidisciplinar para que a gente consiga avançar no campo da segurança pública.

O que caracteriza a subcultura da delinquência?

Dentro do estudo da sociologia temos um fenômeno criminológico chamado de subcultura da delinquência, uma teoria que já não é nova e é conhecida desde a década de 50 e vem sendo desenvolvida desde então. A gente percebe características muito fortes dessa desse tipo criminológico em Cruzeiro, que é a subcultura da delinquência.

Ela é caracterizada por três características fortes que eu percebo muito claramente ali em Cruzeiro. Comportamentos não utilitários: são comportamentos que não trazem proveito material nenhum para quem está cometendo, então ele é exatamente o oposto da organização criminosa.

Numa organização criminosa estruturada, a lógica da atuação é o lucro. Então, quando você tira essa lógica do lucro, do benefício material, e coloca outras lógicas que muitas vezes são até irracionais, fica difícil até exercer uma prevenção.

A gente tem jovens em Cruzeiro divididos em bairros em suas gangues locais, muito caracterizadas por muitas tatuagens, estilo de se vestir, de música, estilo de falar e de se comportar, e que têm rixas com outros bairros.

Por exemplo, um mata um amigo do outro porque este matou o amigo daquele, e daí se desenvolve uma cultura da violência. Temos casos agora, por exemplo, nos últimos sete ou oito meses em Cruzeiro, tivemos sete homicídios que são atribuídos a uma guerra entre duas partes de um bairro, porque os jovens entraram numa rixa e começaram a se matar. Aí quando não se encontravam mais, começaram a matar familiares que não tinham absolutamente nada a ver com a rixa entre eles. Então matou o pai e depois matou o irmão.

Uma violência que prolifera?

Essa é uouve um caso recente agora, de um rapaz, que foi preso há duas semanas, e que tinha seis homicídios na cidade de Cruzeiro. Então, essa conduta não utilitária é uma característica de Cruzeiro, uma característica dessa subcultura da delinquência.

E quais as outras características?

A outra é o negacionismo. Você tem ali uma cultura estabelecida, digamos assim, numa sociedade, um padrão de sociedade, de modelo de sucesso, de vida, e você tem pessoas, você tem jovens, que olham para isso e que nunca vão alcançar, de ter um celular iPhone 13. Eu nunca vou ter um carro, nunca vou ter um emprego para ganhar tanto, então ele se estabelecem ali um padrão de negar aquela cultura que é estabelecida na sociedade e eles começam a se contrapor.

A terceira característica é a malícia comportamental: fazer um ato com a outra pessoa simplesmente por prazer ou para mostrar que é melhor, que é o maior ou querer mostrar alguma coisa na comunidade que está inserido, para ser aceito por ela.

Eles falam sobre quantas vezes já passaram pela Fundação Casa, se já foram presos. Nós pegamos um caso de jovens, com 12 e 13 anos, assaltando por brincadeira. Veja bem isso daí quando você tem a brincadeira de roubar.Eles foram e abordaram uma idosa na rua e levaram o celular dela. Depois nós conseguimos pegar esse pessoal e apreendemos o celular, e tinha gravação deles no celular dessa mulher, olhando e rindo para a câmera, dando gargalhadas, porque o objetivo não era vender o celular, não era lucro, não é nada, era pura e simplesmente mostrar uma malícia comportamental e depois se vangloriar dentro do próprio seio de comunidade deles.

Isso torna mais difícil o trabalho policial?

É um enfrentamento que a polícia está tendo inclusive já não é de hoje. Há a necessidade de aspectos culturais, a necessidade de que outros fatores, outros atores da sociedade possam também contribuir com o trabalho policial.

Estamos investigando e os índices de esclarecimento, notadamente de homicídios, são muito bons, de roubo também estão fortes. Os indicativos criminais vêm caindo. Não são os ideais e estão longe do que a gente queria, só que a polícia continua fazendo um trabalho, mas nós precisamos também que outros atores sociais interajam junto com a polícia, para que esse jovem não seja tão facilmente atraído pelo crime, pela ideia do lucro fácil e do dinheiro fácil, daquela cultura da criminalidade mesmo, de achar bonito e ser legal ser bandido. Então esse é o grande foco do nosso trabalho lá em Cruzeiro.

Qual o perfil desses jovens?

Se nós fizermos uma análise de quem está matando de quem está morrendo, as famílias são geralmente desestruturadas, jovens de baixa escolaridade, desempregados, sem perspectiva nenhuma cultural ou propriamente de emprego.

É uma característica muito comum e agora acima de tudo completamente tatuados. Essa é uma marca que eles estão se colocando. Então, como é que vai ser essa pessoa no futuro, onde eles vão se inserir, então ele acaba sendo agarrado naquele fato ali e a gente entra numa espiral de mazelas e a coisa não evolui.

A gente observa bem essa característica do jovem lá em Cruzeiro, até ali os 25 anos. De 15 a 25 anos de idade, são adultos jovens. Então essa é a idade ali basicamente de quem está matando e de quem está morrendo.

Para conseguir investigar foi fundamental compreender essa dinâmica do crime em Cruzeiro?

Foi fundamental para entender o que está acontecendo em Cruzeiro saber o porquê esses jovens estão se matando, e aí lançar mão de estratégias.

E o papel do poder público?

Eu tenho conversado muito com a prefeitura [de Cruzeiro]. O prefeito Thales Gabriel está muito atento a essa questão sociocultural. Inclusive tenho participado até de reuniões do secretariado na prefeitura, que é uma grande aliada.

Tivemos recentemente no Rio de Janeiro conhecendo programas sociais de inclusão social de jovens. O Rio é notadamente conhecido por grandes problemas em comunidade carentes, com muitos jovens. Então, tem uma expertise desse lado.

Eu acompanhei o prefeito, o gabinete dele e o pessoal da cultura, da educação social, e passamos em vários equipamentos do Governo do Estado do Rio de Janeiro e o que fizeram para tentar atrair os jovens, vamos dizer assim, para um lado bom e tirá-los da criminalidade. Então, eu acho importante esse conhecimento aliado ao trabalho da polícia, que é o trabalho forte de investigação, o trabalho policial voltado para inteligência.

É indispensável agir usando a inteligência policial?

Dentro das escolas de policiamento que temos hoje, a gente tem a mais moderna que é o policiamento voltado para a inteligência. Então, Cruzeiro está muito voltado para a inteligência policial e com a inteligência você identifica locais, identifica pessoas, foco de criminalidade ou de estruturação e começa a combater exatamente aquele foco ali. A gente tem conseguido muitas prisões, operações e o que tem resultado em melhor estatística também.

Um fator que eu considero importante é aliança entre os órgãos de segurança. A gente conversa muito com Polícia Militar, conversa muito com a Secretaria de Segurança, conversa muito com o COI, então a informação roda muito rapidamente, e isso é muito importante. A informação é hoje ouro, a gente sabe disso e a informação corre e circula muito rápido aqui nesse grupo. O trabalho é integrado e feito diariamente. As pessoas não veem essa integração, mas ela é cotidiana e isso tem feito a diferença também.

Nas investigações, a polícia descobriu jovens fazendo lives sobre crimes que tinham cometido?

É a questão do comportamento não utilitário. Você vai e comete um homicídio e depois você posta no seu status do WhatsApp que você matou uma pessoa. Qual é a lógica de você fazer isso? Você quer mostrar que você matou, você quer ficar respeitado perante alguém ou uma comunidade ou quer mandar um recado para alguém, e você não está muito preocupado com punição. Ainda mais se for adolescente, infelizmente.

Existe essa percepção entre os mais novos que vão fazer uma passagem pela Fundação Casa. E vão sair muito em breve. E muita das vezes é até importante para eles. Veja, para eles é importante ter esse carimbo de que passou por uma situação dessa de detenção na Fundação Casa, para sair no outro nível na rua. A gente tem esse problema para poder tratar. Então são aspectos importantes e a gente precisa ficar atento.

O sr. enfrenta um situação bastante singular em Cruzeiro, não é?

A gente pode afirmar que é uma situação peculiar em relação ao restante do estado, certamente tem uma condição peculiar por tudo o que a gente vem vendo. Não existe uma estruturação forte do crime organizado. Inclusive, até porque tudo que vem acontecendo em Cruzeiro é exatamente o oposto do que é uma coisa organizada. Então, dentro dessa lógica da conduta não utilitária, se a lógica é vender drogas e auferir lucro, que é o propósito da renda de drogas, matar pessoas e fazer postagens de atos de violência é exatamente o oposto do que seria lógico. Então esse é o problema que a gente tem. Qual é a lógica de atuação desses jovens?

Em investigações que descobrimos a autoria, conversando com autores e com testemunhos, sabemos que eles estão bebendo e consumindo drogas e resolvem ir ao bairro onde têm rixas. Eles passam com duas motos e atiram em quem tiver na rua. Se for conhecido ou aliado [de quem tem rixa] vai atirar e vai matar. Qual é a lógica disso? Então, por isso que em Cruzeiro eu identifiquei essa peculiaridade, a atuação desse jovem que tornam o combate, o enfrentamento, um desafio muito grande.

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