ANÁLISE

O que Oppenheimer e Beethoven têm em comum

História está repleta de feitos que ratificam a nossa potência criadora, inovadora e transformadora. Essa ação criativa pode estar direcionada para o novo ou para a destruição

02/04/2024 | Tempo de leitura: 6 min

Reprodução

Francisco Estefogo é membro da Academia Taubateana de Letras
Francisco Estefogo é membro da Academia Taubateana de Letras

Oppenheimer, um dos filmes queridinhos do Oscar 2024, dirigido por Christopher Nolan e recentemente laureado com 7 estatuetas, narra a história de Julius Robert Oppenheimer (1904-1967), físico teórico americano e criador da bomba atômica que quase tirou Hiroshima e Nagazaki do mapa. Sobreleva ressaltar que tamanha destruição indiscriminada foi decorrente da resposta vingativa dos EUA ao ataque japonês realizado em 7 de dezembro de 1941, contra o Pearl Harbour, no Havaí. O curioso é que, após o aniquilamento das 2 cidades japonesas, Oppenheimer, considerado o cientista mais famoso do século XX juntamente com Albert Einstein (1879-1955), reuniu-se com os pesquisadores que trabalharam no projeto da construção de bombas atômicas, conhecido como Manhattan, e admitiu a responsabilidade direta das devastadoras consequências de seu feito. “Agora eu me tornei a morte, o destruidor de mundos”, reconheceu o controverso diretor estadunidense do Laboratório Nacional Los Alamos, no Novo México, encarregado de desenvolver as armas nucleares, ao se pautar nas escrituras hindu Bagavadeguitá.

Embora pudesse ser usado para o avanço da humanidade, o brilhantismo de Oppenheimer, concernente à inédita capacidade de manipular a energia atômica, desencadeou uma revolução tecnológica, sem precedentes na época, que alterou o curso da história para sempre. Paradoxalmente, a sapiência do referido físico também carrega consigo o nefasto e desumano poder de destruição em massa. Esse posicionamento, de alguma forma, remete-nos a uma das máximas de Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão, quando assevera que “o fato de que o ser humano consegue ter a representação do “eu” o eleva infinitamente acima de outros seres da Terra”.

Nessa mesma toada de maestria intelectual, Ludwig van Beethoven (1770-1827), compositor e pianista alemão, igualmente se destaca pela criação de suas 9 sinfonias completas, com elementos revolucionários para os longínquos séculos XVIII e XIX. Suas produções testemunham a capacidade humana de transcender as limitações físicas, como sua deficiência auditiva, e se conectar com a sublime natureza do ser humano. Em sua jornada produtiva e criativa, Beethoven, além de dominar os elementos técnicos dos arranjos de vanguarda, também mergulhou nas profundezas da alma, ao explorar suas complexidades, mistérios e contradições.

A princípio, os dois exemplos de proezas humanas oportunizam a reflexão sobre a tênue fronteira que separa o bem do mal, pois essas invenções levantam questões profundas acerca do papel do conhecimento e da responsabilidade humana. Aqui reside o dilema central desta provocação: o que Oppenheimer e Beethoven têm comum? R.: O potencial para o bem e para o mal. Essa armadilha pode ser facilmente confundida em ciladas semânticas e miragens metafísicas em relação ao sucesso, ao egoísmo, bem como ao fanatismo e à prepotência. Portanto, devemos nos questionar não apenas se podemos realizar certas façanhas tecnológicas, ou mesmo atividades do dia a dia, mas se de fato devemos prosseguir com determinados projetos e ações, considerando as possíveis implicações éticas e humanitárias. Como humanos, a princípio, temos a consciência de saber se estamos fazendo o bem ou o mal, a considerar, especialmente, a vida na pólis, onde, a rigor, todos participariam ativamente na vida política, social e cultural. Nesse terreno, Aristóteles (384-322 a.C.), filósofo grego, acreditava que a vida na pólis permitiria aos indivíduos desenvolverem suas virtudes e habilidades, com vistas ao bem-estar coletivo, uma vez que era o espaço de se alcançar a excelência moral, política e intelectual, por meio da participação ativa na comunidade e do cultivo das virtudes. Tempos bons aqueles.

A bomba atômica, por um lado, trouxe o fim da II Guerra Mundial, evitando, assim, possíveis baixas militares frente a iminente invasão do Japão. Por outro lado, seu deliberado uso em Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, resultou em um indelével custo humano, com milhares de vidas perdidas instantaneamente e uma herança de sofrimento duradouro até os dias de hoje devido às consequências do altíssimo nível da nefasta radiação. Destarte, a criação da bomba atômica nos leva a questionar a natureza do conhecimento científico, bem como a responsabilidade moral dos que o possuem. Em última instância, a bomba atômica serve como um lembrete sombrio do poder cego, da fragilidade e da maldade humanidade, principalmente nos dias de hoje, diante das ameaçadoras narrativas da Rússia da Coreia do Norte atinentes a um novo conflito nuclear. Cabe a nós, como sociedade, buscar o equilíbrio delicado entre o avanço científico e a responsabilidade moral e ética, de modo a promover o bem-estar humano e a paz mundial. Neste período de tantos abalos nas placas tectônicas da demografia geopolítica, dada as belicosas circunstâncias hodiernas mundiais, é patente afirmar que, então, a humanidade, em larga escala, infelizmente encontra-se em total desequilíbrio emocional, social, econômico, religioso e político.

No avesso desse descomedimento humano, responsável por martírios e padecimentos, as sinfonias de Beethoven ecoam com uma intensidade emocional que atravessa séculos, ao tocar os corações e as mentes de pessoas de todas as culturas e épocas. Nesse sentido, o legado de Beethoven transcende as barreiras do tempo e do espaço, já que ilumina a condição humana com uma luz esperançosa, ímpar e inconfundível. Graças à sua música, Beethoven resgata a capacidade do ser humano para criar, ao invés de arsenal nuclear, beleza e harmonia a partir do caos, dos problemas e das adversidades. Suas sinfonias são testemunho da resiliência do espírito humano e da capacidade de transformar o sofrimento em algo sublime, pleno e encantador. Assim, ao contemplar a destreza vanguardista de Beethoven, somos, a priori, inspirados a buscar o bem em nossas próprias vidas, a cultivar o bem coletivo, a virtude e a compaixão, além de nos esforçar para alcançar o mais alto potencial humano. Nesse esteio, para Aristóteles, o bem está relacionado à virtude e ao equilíbrio para alcançar a Eudaimonia, (do grego antigo: ε?δαιμον?α), ou seja, a felicidade, objetivo da vida humana, por intermédio da prática das virtudes. Portanto, fazer o bem é agir de acordo com as virtudes, como a coragem, a justiça e a temperança.

 

Por mais que o filme “Oppenheimer” seja uma peremptória e soberba obra prima do ponto de vista da arte cinematográfica e, por isso, deveria ser assistido para se compreender a dimensão do beligerante perigo catastrófico que vivemos na contemporaneidade, as sinfonias de Beethoven podem ser, exageros retóricos à parte, antígenos virtuosos para encontrar o santo graal dos tempos modernos: o equilíbrio. Na contramão do sentimento de soberba, retaliação e vingança apregoado pelo projeto Manhattan, certamente guardadas as devidas proporções geopolíticas de outrora, a superação e o triunfo sobre os percalços derivados dos desafios pessoais, como a surdez do regente alemão, tal qual o senso de comunidade e solidariedade são algumas prováveis sensações ao se deleitar com o bálsamo dos padrões harmônicos, assim como das melodias, claves e notas relaxantes das composições de Beethoven. Também podem ser uma saída emocional para lidar com sentimentos de raiva, frustração ou tristeza, causados pelas suscetíveis intempéries das inexoráveis contendas do efêmero percurso humano. Como ratifica Platão (427-347 a.C.), filósofo grego “a música é um meio mais poderoso do que qualquer outro porque o ritmo e a harmonia têm a sua sede na alma (razão). Ela enriquece, confere-lhe a graça e ilumina aquele que recebe uma verdadeira educação”.

* Francisco Estefogo é membro titular da Academia Taubateana de Letras, pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. No momento, é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e também na PUCSP.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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1 COMENTÁRIOS

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  • Gabriela
    07/04/2024
    Excelente texto!! Extremamente relevante, trazendo essa reflexão para a sociedade atual.