IDEIAS&

Vivemos ou meramente sobrevivemos?

É membro titular da Academia Taubateana de Letras, pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Unitau

Por Francisco Estefogo | 04/03/2024 | Tempo de leitura: 5 min
Taubaté

Divulgação

O autor Francisco Estefogo
O autor Francisco Estefogo

O nosso modus vivendi, desguarnecido de alguma reflexão, muitas vezes, pode nos levar a acreditar que os afazeres do nosso dia a dia façam parte da contemporânea natureza humana. A banalização da normatização desse existir fossilizado, incorporado à nossa rotina, pode se tornar trivial, ao fazer com que nos vejamos como seres inocentes e frágeis ante o tecido social. Esse jeito de conceber esse tipo de vivência meramente protocolar, ou melhor, de sobrevivência, inicia-se, via de regra, quando ainda somos crianças. Destarte, alienados desde muito jovens, quando nos vermos tristes, decepcionados e insatisfeitos, normalmente, jogamos toda a culpa das nossas mazelas no mundo e nos outros. No que diz respeito a essa infelicidade, Karl Marx (1818-1883), filósofo alemão, adverte-nos que “quando você não está feliz, é preciso mudar, resistir à tentação do retorno. O fraco não vai a lugar algum”.

Por volta dos 6 ou 7 anos, muitos de nós, começamos o percurso escolar. Se tivermos vontade, estrutura e apoio, além de um pouco de sorte, continuamos essa trajetória até o ensino médio. Lá se vão 11 ou 12 anos, se tudo der certo. Aos 16 ou 17 anos, alguns já vislumbram o ingresso na universidade. A propósito, no Brasil, pouquíssimos alcançam esses feitos na seara nacional de educação. Segundo os dados de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), 41,5% da população entre 25 e 64 anos não concluiu a educação básica. Ademais, menos de 20% da população brasileira finalizou a graduação. São mais de 160 milhões de pessoas sem o nível superior.

Em que pese esse descalabro vergonhoso, uma das razões para a abissal desigualdade social num país que ostenta a nona economia do mundo, diante de um Produto Interno Bruto (PIB) estimado em US$ 2,13 trilhões em 2023, o nosso itinerário, usualmente a partir dessa fase da vida, envereda-se por um plausível emprego, seguido, às vezes, de casamento ou união estável (de preferência, ainda jovem e com o sexo oposto). O passo seguinte é  avistar o longínquo sonho, quase inexequível, de aquisição de um imóvel. E por aí seguimos sobrevivendo, exclusivamente valorizando o poder sobre as conquistas, principalmente, o patrimônio material. Nesse campo, o filósofo alemão Max Horkheimer (1885-1973) alerta que “quanto mais intensa é a preocupação do indivíduo com o poder sobre as coisas, mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuínos”. De forma simplificada, nascemos num invólucro social, maiormente acrítico, que direciona a nossa trajetória para, devido, sobretudo, às garras do capitalismo, em linhas gerais, nascer, estudar, trabalhar e, quando muito, supostamente construir uma família (preferencialmente, composta de um casal heterossexual e, supostamente, 2 rebentos). Se assim o for, a nossa existência poderia ser resumida pela mera dimensão biológica vegetativa.

Indubitavelmente, diante da nossa arraigada imersão na modernidade capitalista, é bem desafiador prospectar o nosso roteiro fora desse hodierno padrãozinho, que beira a mediocridade. No entanto, a considerar a nossa vocação ontológica expansionista e revolucionária, é patente se debruçar sobre as possibilidades de formas de alienação que nos transformam em seres inautênticos, pois, somos, à primeira vista, pensantes, históricos e inacabados, portanto, legitimados às mudanças, já que estamos dialeticamente imbricados no contexto sócio-histórico-cultural, sempre em movimento. Nesse terreno, Clarice Lispector, (1920-1977) romancista brasileira, ao afirmar que “talvez, não possamos mudar o vento, mas possamos ajustar as velas”, desenha um horizonte mais genuíno para a nossa experiência existencial.

Essa cacofonia cotidiana, que flerta com a mesmice antropomórfica, a saber, a uniformidade dos modos de subsistência, pode eclipsar atitudes de ser, pensar, viver e desejar outras. Basicamente, a dificuldade em transcender essa esfera invariável se calca, por vezes, em pensamentos presos ao passado, bem como na acriticidade (ou covardia) para rompermos com a nossa alienação decorrente de modelos, mitos, receitas, dogmas e pretéritas prerrogativas. Assim, cegos, não conseguimos ampliar a compreensão da nossa essência humana. Isso posto, a reflexão que emerge é sobre a nossa potência para entender que a vida não deveria ser incondicionalmente determinada pelas draconianos traços de controle físicos e ideológicos da sociedade.

Nesse sentido, as proposições filosóficas marxistas, ao entender que somos construtores da nossa própria história, refuta qualquer contemplação ao ideal abstrato da humanidade, dado o fato de que a mera influência orientadora acerca da objetividade e da subjetividade ignora a práxis, isto é, atividade humana prático-crítica e materialista, gênese da nossa relação com o mundo. Em larga medida, trata-se na verdade, da nossa potência como autores dos nossos enredos particulares a partir da práxis transformadora, em oposição à dimensão metafísica da complexidade da concretude. Para tal feito, é preciso considerar a relação dialética da história e da nossa ação como catalisadores de mudanças. Similarmente, pautado nas concepções marxistas, Paulo Freire (1921-1997), educador e filósofo brasileiro, enaltece a educação (aquela que, por meio da reflexão crítica,  lê o mundo para compreendê-lo e depois transformá-lo) como elemento humanizador absolutamente central para, baseados na criticidade e na historicidade da realidade que vivemos, superarmos as condições existenciais que, muitas vezes, coisificam nos como mais um ser que irá possivelmente reproduzir os ciclos dos nossos pais, avós e outras gerações passadas. Face ao contingente de brasileiros que carece do universo escolar, preferivelmente crítico, como supracitado, é patente ficar à espreita de como as forças manipuladoras sociais nos arrebatarão nos tempos por vir.

Na contramão da naturalização das maneiras de viver, incorporar o papel de iconoclasta, assentado na insurgência questionadora de poderes estabelecidos, pode ser, hipoteticamente, um celeiro de vidas autênticas. Nessa seara, Salvador Dali (1904-1989), artista espanhol transgressor de protocolos na arte de pintar, por meio do surrealismo de imagens oníricas, corrobora a confusão sistemática, repleta de pinceladas vanguardistas, uma vez que catalisa a criatividade. Diz o pintor catalão do indefectível bigode de pontas longas e finas: “tudo o que é contraditório cria vida”.

 * Francisco Estefogo é membro titular da Academia Taubateana de Letras, pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. No momento, é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e também na PUCSP.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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