ARTIGO

Como as linguagens nos afetam?

Por Francisco Estefogo | 02/08/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Membro titular da Academia Taubateana de Letras

O mundo, representado pelas onipresentes linguagens verbais e não verbais, pode ser compreendido como a gênese dos pilares do nosso “modus vivendi”. Dessa forma, todos os tipos de linguagens que nos cercam são irrestritamente fulcrais e pungentes na dinâmica estruturante da vida. A hodiernidade, frente às recentes descobertas científicas e aos avanços tecnológicos, em particular, concernentes à comunicação e à internet, é atravessada por céleres mudanças culturais, sociais, políticas, econômicas e, portanto, pela constante reconstrução de conceitos, sentidos, representações e percepções dos modos de ser, viver e pensar. Embora as linguagens possam ser antídotos contra a mesmice da antropomorfia, sobretudo, as originárias de contextos multidiversos e plurilíngues, reflexões precisam ser propiciadas em relação ao teor das narrativas nas quais estamos cotidianamente inseridos.

Nesse sentido, Santo Agostinho (354-430 d.C.), um dos mais importantes teólogos e filósofos nos primeiros séculos do cristianismo,concebe o ser humano a partir da composição divina unitrinitária da alma entre a inteligência, a memória e a vontade. Trata-se dos três elementos que, inseparáveis e em estreita relação uns com os outros, estruturam a alma. Pela perspectiva agostiniana, a convergência entre essas esferas é o que configura o modelo epistemológico, antropológico e ontológico do ser humano. O movimento dessa tríade, por ser inevitavelmente mediado pelas linguagens, pode ser maculado, infringindo a pureza humana de ser, amar e conhecer, como apregoado pelas proposições do bispo de Hipona. Nesse processo, decorrente das imagens sensíveis e exteriores que criou de si, a alma pode se “confundir com as aparências e amar fenômenos controversos”. Destarte, as linguagens, verbais ou não, afetam-nos profundamente, posto que constituem candidamente, pelo prisma agostiniano, a trindade que galvaniza a interioridade e o pensamento humano. Nessa toada, Marco Aurélio (121-180 d.C.), escritor, filósofo estoico e imperador romano, ensina-nos que “a alma é tingida com a cor dos nossos pensamentos”.

A retórica beligerante, preconceituosa, misógina, opressora, negacionista, silenciadora e colonizadora, mesmo já na segunda década do multifacetado, conectado e dito “avançado” século XXI, tem sido a tônica de algumas verborragiaspropagadas constantemente nos principais meios de comunicação, maiormente, nas ubíquas redes sociais. Mais particularmente, feminicídios, guerras, desmatamentos de áreas verdes, aquecimento global, fome, miséria, violência doméstica, ecocídio, racismo, intolerância religiosa, bem como desigualdades étnico-culturais, abusos sexuais, cizânias, injustiças sociais, terrorismo psicológicoe governos autoritários são algumas das circunstâncias temerárias e deletérias que, de alguma forma, permeiam as linguagens do mundo contemporâneo. Por mais que não sejam tão presentes na mídia, seguramente, há conjunturas de paz, harmonia, amor, compaixão, alegria, paz, resistência, e solidariedade em algum recôndito do planeta. No entanto, a considerar a visão agostiniana supracitada, ficar à espreita de como a estruturação do ser humano se embrenha nesse cenário ameaçador, ardiloso e pernicioso se faz premente, pois, uma vez equivocada e ludibriada, a alma pode restringir maneiras jubilosas de pensar, ser e viver. Em outras palavras, pela ótica de Agostinho, a alma pode entender que a essência humana está inexoravelmente articulada com linguagens contenciosas oriundas de searas cruéis, gananciosas, desumanas, dantescas, soberbas e vaidosas. Ou seja, quase um flerte, mesmo que seja rarefeito, com a distopia.

Nesse terreno, é importante refletir sobre possíveis meios para se evitar queas linguagens funestas obscureçam a identificação do que e como deve ser o “bem viver”, manancial de irmandade, ternura e benquerença, como propõe Ailton Krenak, indígena, ambientalista, filósofo e escritor brasileiro. Talvez potencializar a produção criativa, crítica e compartilhada dos multidiversos conhecimentos, pensares e sentires possa ser uma chance para que a alma não se corrompa.  Ademais, o agir questionador, crítico, democrático e transformador, promovido por meio de atividades de fraternidade, amor, afeto, respeito e fé, pode ser o recurso para se edificar celeiros de linguagens aprazíveis, inefáveis e lisonjeiras. À vista dessa monta, a alma pode transcender as linguagens taciturnas da contemporaneidade. Consequentemente, posta como resistente e blindada das belicosas e insidiosas conceituações mundanas modernas, a alma pode se estruturar na sua diáfana e ilibada limpidez e, assim, constituir inteligências, memórias e vontades mais afetuosas, altruístas, plácidas, benevolentes e equilibradas. Como adverte Erasmo de Rotterdam (1466-1536), teólogo e filósofo humanista holandês, “o lobo talvez mude a pele, mas nunca a alma.”

Membro titular da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. No momento, é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e também na PUCSP.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

Receba as notícias mais relevantes de Vale Do Paraíba e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.