Sem qualquer tipo de cerimônia, vi uma barata passear pelo chão limpo da sala. A faxina ocorrera na véspera. Não havia motivo por aquele inseto abjeto desfilar pelos rejuntes de meus pisos brancos. Inerte, pus-me a admirar a ousadia do asqueroso e diminuto animal.
Encarei o bicho com sobrancelhas cerradas. Pareceu conferir resultado, pois a barata quedou-se paralisada. Não sei por quanto tempo, ambas ficamos nesta rinha psicológica. A barata mexia somente as antenas como quem buscasse alguma informação no ar.
O alarme do celular tocou, me fazendo lembrar que era hora de tomar o antitérmico. Pisquei e girei o corpo na direção do som para desativar o barulho que irritava a mim e a barata. Quando voltei os olhos para o chão, ela havia sumido.
Levantei do sofá e cacei a minha inimiga pela sala, pela cozinha, pelo banheiro, pelos quartos. Ela simplesmente desaparecera. Me senti traída. Tomei o remédio e voltei a deitar no sofá. Ninada pela sonoplastia da TV, dormi.
Ao acordar de um sono profundo, lembrei de sonhar com uma barata. Em dúvida, se o que experenciei era sonho ou realidade, veio uma sensação estranha. De repente, me veio à mente que eu existo e sou humana. Poderia ter vindo inseto, mas nasci pessoa. Me dei por grata e inadvertidamente repeli a coberta que até então me protegia como um casulo.
Existo e não sou uma barata. Do contrário, minha vida é uma tarefa pessoal e mística e complexa. É claro que teoricamente a gente sabe que existe, o que pega é a prática. A gente se esquece de que é gente. O caminho de volta para casa pode ter mais desvios do que atalhos. E insetos.
Fiquei pensando se a barata sabia para onde ir após a nossa guerra fria. Torci para que ela encontrasse o melhor rumo longe de mim. Ainda bem que nasci humana. Sou feita de carne, osso e sentimentos nobres.
Munida de celular, pesquiso e descubro que a barata é um artrópode: animal invertebrado com exoesqueleto. Eu sabia disso na época do Fundamental! Me questiono se a barata teria alguma curiosidade a meu respeito. De minha parte, o interesse era genuíno.
Num relance de sobriedade, me dou conta de que a barata jamais teria a delicadeza de saber quem sou. Eu era só mais uma humana qualquer, sem significado para a barata. Se ela fosse capaz de julgar, é provável que até se sentisse superior a mim, que facilmente lhe esmagaria com um pé se isso não me causasse repulsa. Celular em punho, digito uma mensagem para Ricardo. “Amor, traga pão, leite sem lactose e um spray inseticida”.