KELMA JUCÁ

Sobre machismo, pipas e cabelo curto

Por Kelma Jucá | Jornalista
| Tempo de leitura: 2 min

Eu deveria ter no máximo nove anos quando fui defrontada pela primeira vez com o que convencionamos chamar machismo estrutural. Aconteceu num dia de férias escolares na capital cearense quando me aventurei a soltar pipas. Para quem desconhece, Fortaleza é a esquina do mundo, sendo impossível, por exemplo, ler ao ar livre um jornal standard – aquele formato mais retangular do que quadrado –, sem que o vento lhe bagunce as páginas como um moleque insolente.

Com as condições meteorológicas adequadas, o vulgo vento, e dias inteiros sem compromissos, soltar pipas se tornou uma diversão entre meninos e meninas do meu bairro. Num dado momento, na enorme e tranquila encruzilhada perto de casa, lá estava eu – sozinha, pois todos os outros já haviam se cansado. Eu olhava fixamente para o céu, coordenando a linha e fazendo minha pipa mover-se como uma bailarina alada quando ouvi alguém falar admirado: “- Uauu! Muito bem! Essa pipa tá bem alta”.

Ao me virar para retribuir em sorriso o dito elogio, o homem de quem eu desconhecia a identidade, espantou-se: “- Mas é uma moça!? Não! Isso não é coisa de mocinha!”. E saiu pedalando a bicicleta dele – que lembro ser vermelha –, com a indignação de quem acabara de gastar o seu latim à toa.  Eu era uma menina na execução de uma brincadeira que, para ele, seria exclusiva do gênero masculino.

Naquele mesmo instante, voltei para casa carregando minha pipa numa mão e a vergonha em outra. Contei para minha mãe e ainda quis lhe culpar, pois se ela não tivesse cortado o meu cabelo “como de menino” isso não teria acontecido – não tinha a maturidade para entender que o problema não era o cabelo. Ela me falou que isso tudo era bobagem. Mas, desde então, nunca mais soltei pipas.

Me pergunto que parte de mim morreu naquele dia. Por que o comentário de um estranho pode nos machucar tanto? Eu bem que queria enfrentar os meus moinhos de vento como tantas mulheres enfrentam desde sempre os grandes obstáculos que a vida lhes apresenta, sem titubear. Mas, não. Não sou dessas. Achava que iria causar menos incômodo se me recolhesse para dentro de mim, tipo um molusco na sua concha.

Eu não sabia que a fala do desconhecido era um comentário sexista – nem que viriam muitos outros. Como a maioria das crianças na década de 1980, fui crescendo meio machista e na ânsia vã de corresponder às expectativas alheias. Por sorte, sempre há tempo para se reinventar. Recentemente, cortei o cabelo bem curto.  Falta soltar pipa. Entre outras coisas.

Comentários

1 Comentários

  • Renata Caballero 29/06/2023
    Bora soltar pipas mulherada.