IDEIAS

Será que a culpa é só das redes sociais?

Membro da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Unitau

Por Francisco Estefogo | 01/06/2023 | Tempo de leitura: 6 min

Ultimamente, muito tem se discutido sobre a dinâmica dos discursos de ódio e da capilaridade das fake news, em particular, dos insultos à democracia, da polarização política-ideológica-partidária, das conspirações golpistas e de crueldade, como os recentes ataques nas escolas, bem como das infrações e transgressões realizadas contra bancos, idosos, entre outros segmentos e públicos sujeitos à ação de criminosos. Embora a retórica da ira e da mentira assolam a humanidade desde os primórdios da história, é notório, entretanto, que as redes sociais, além de terem um alcance colossal, disseminam esses percalços muito mais rapidamente.

Inobstante a inconteste importância dos aparatos digitais de comunicação nos últimos 20 anos, no que se refere aos avanços científicos, tecnológicos e sociais, a internet tem sido, por acaso, o bode expiatório, que tem culpa no cartório em relação às mazelas da contemporaneidade. Numa nação tão contenciosa como a nossa, em que a legislação é pródiga de aliviar os delitos e que as disputas corporativas costumam normalmente serem levadas ao tribunal (que quase sempre acabam em pizza), as redes sociais e algumas plataformas são a bola da vez. Aventa-se a provável moderação de informações, a restrição de acesso e a distribuição gratuita de conteúdo e o controle da liberdade de expressão, dentre outras regras para o possível gerenciamento do caótico ambiente da rede mundial. Talvez seja mesmo necessário um cuidado mais criterioso concernente ao que é postado. No entanto, sobreleva ficar à espreita da envergadura da liberdade de expressão que, como direito fundamental petrificado na Constituição, não deveria, a rigor, ser submetida à censura. No mais, o livre debate de ideias e o pluralismo de opiniões são pilares centrais de um regime democrático.

Com o advento do ChatGPT, assistente virtual com inteligência artificial, lançado em novembro de 2022, o caldo engrossa para cima da responsabilidade da internet e, na esteira, igualmente das redes sociais, em relação às vigentes desgraças da sociedade. Decorrente do novo recurso, já pululam nas redes sociais cursos, livros e palestras sobre como aproveitar, num passe de mágica, o máximo da novidade, no nosso cotidiano e, principalmente, no contexto escolar. De forma geral, apregoam como o tal ChatGPT pode ser o santo graal para resolver os problemas da vida moderna. Indubitavelmente, a referida inovação deve ser de grande serventia para a humanidade. No entanto, assim como tudo o que nos cerca, é preciso ter cautela e um olhar crítico para esse palpitante trending topic que inunda as redes sociais.

Na contramão dos que profetizam e querem mercantilizar as vantagens do ChatGPT, Noam Chomsky, linguista, filósofo, sociólogo e ativista político norte-americano, recentemente afirmou que “esta inteligência artificial é o ataque mais radical ao pensamento crítico”. Quem sabe esse seja o pulo do gato para lidar com a revolução dos artefatos tecnológicos, bem como enfrentar os decorrentes impactos na sociedade: aprender a pensar criticamente. Nessa toada, Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política alemã de origem judaica, faz um alerta (em especial, para o Legislativo): “em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime”.

Decerto, mais que uma guerra ideológica pela regulação das redes sociais e algumas plataformas, que atormenta a Câmara dos Deputados por quase 3 anos, tempo e dinheiro que poderia ser dispendido para outras agendas mais prementes, como o combate à fome e o crescimento econômico, debruçar-se sobre a leitura crítica das linguagens que permeiam as redes fosse, provavelmente, mais racional e sensato, pois o progresso das ferramentas eletrônicas de comunicação sinaliza não ter fim. Nesse sentido, a escola, em tese, um dos celeiros de produção de conhecimentos e linguagens, estaria na ribalta. Porém, pouco, ou nada, se discute sobre uma plausível contribuição decisiva da sonhada educação política e crítica em relação ao projeto de lei que endurece as regras para as redes sociais. A propósito, essa proposta normativa anuncia ser mais um voo de galinha do Legislativo, posto que, como já aludido, o futuro nos reserva infindáveis maneiras de se comunicar.

Numa postura que beira a fleuma frente às novas linguagens oriundas das ferramentas tecnológicas de comunicação, a educação, nos seus moldes atuais, parece estar recolhida nos seus muros. Desse modo, denota que vive num mundo alheio à realidade, desconectada, de alguma forma, das céleres mudanças da sociedade, particularmente, no que concerne às linguagens hodiernas. Os resultados do exame Progress in International Reading Literacy Study (PIRLS), publicados há poucas semanas, por exemplo, que avalia a capacidade de leitura de alunos do 4º ano do ensino fundamental, aparenta corroborar essa conduta anêmica da instituição escolar brasileira. O referido teste examina a compreensão de textos, as conexões e o senso crítico a respeito das informações lidas. O Brasil, que participou pela primeira vez, amargou uma vergonhosa 39ª posição entre 43 países, atrás de países paupérrimos, como Azerbaijão e Uzbequistão. Kant (1724-1804), filósofo alemão e um dos principais pensadores do Iluminismo, oportuniza a reflexão sobre mais esse pífio desempenho da educação brasileira, que patina há décadas, ao afirmar que “o homem não é nada além do que a educação faz dele”.

 Esse desfecho nos permite refletir sobre as seguintes questões: será que as fake news e os discursos de ódio, que, como já apontado, atravessam a humanidade desde sempre, são de total responsabilidade das redes sociais? Será que regulamentar as redes sociais e determinadas plataformas resolverá os espraiamentos desses acontecimentos da hodiernidade, considerando que novos instrumentos de comunicação muito brevemente estarão em uso? Ou será que a humanidade, geralmente, padece de pensamento crítico que, à primeira vista, poderia ser desenvolvido na escola para se tomar decisões mais políticas, lógicas, racionais, equilibradas e assertivas, com as devidas sustentações argumentativas?

Ressalta-se que se, porventura, a educação legitimasse a sua potência política e catalisadora de geração de saberes, de reflexões e de pensamentos críticos, teríamos, à princípio, mais consciência para analisar, resistir e transcender os entraves da internet que incendeiam a atualidade. Como nos ensina Paulo Freire (1921-1997), educador e filósofo brasileiro, “além de um ato de conhecimento, a educação é também um ato político. É por isso que não há pedagogia neutra”.

Dentre outras práticas, em prol do desenvolvimento do conceito de criticidade, a escola poderia ratificar seu propósito social, político, epistemológico e ontológico com base nas seguintes ações: a) questionar as relações de poder, a opressão e as desigualdades sociais; b) desafiar as políticas existentes e promover a justiça social para as minorias culturais e outras marginalizadas; c) promover a multidiversidade linguística e intercultural, a produção de conhecimentos e de novas linguagens, ancorada nos aspectos sócio-histórico culturais; d) formar cidadãos e cidadãs críticos(as), construtores da realidade e transformadores, capazes de questionar o status quo e atuar de forma consciente, coletiva, política, produtiva e responsável na sociedade.

Em tempo. Em relação ao pensamento crítico, Kant adverte que “só a crítica pode cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que se podem tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o cepticismo, que são, sobretudo, perigosos para as escolas e dificilmente se propagam no público”.

* Membro titular da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. No momento, é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e também na PUCSP

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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