IDEIAS

O sapato da estação

Por Kelma Jucá | 20/05/2023 | Tempo de leitura: 2 min
São José dos Campos

Era ainda muito criança para entender que perdemos os sapatos à medida que crescemos. Intimamente, cultivava um apreço pueril pelo par de tênis dado pela madrinha. Com pouco uso, teve receio de parecer desfeita o fato do pé não mais entrar como antes. Parecia ser imperdoável, quase uma mal criação aqueles pezinhos não caberem mais ali.

 

Estava a crescer. E não sabia que parte do processo é deixar para trás. É a arte do desapego.

 

Sem perceber, começou a calçar o sofrimento. De início, o sapato até aparentava lacear. Puro engodo! Os calos, que entendemos como proteção, eram um pedido de ajuda. E gritavam. Os calos na lateral do dedo mínimo choravam por liberdade.

 

A planta dos pés ansiava por sentir o chão à flor da pele. “Mas o sapato custou caro e é bonito”. Que desperdício se desfazer dele! E, assim, foi-se deformando o dedão. O desconforto tornou-se costume; a beleza valia o preço.

 

E os pés seguiam inchando. E, mais e mais, apertados naquele sapato. Tão bonito. Tão moderno. Tão infantojuvenil. Era tão-tão que até a dor ficava tímida e o calo se punha mudo. O pé em constante deformação – porém, plenamente “vestido” daquele amor materno postiço.

 

Chegara um ponto em que o pé importava menos do que o calçado. Pés todos têm. Aquele sapato, dado pela madrinha, ninguém mais tinha. E, disso, justificava o esforço da dor continuada que limita o andar e impõe graça na inércia de ficar parada vendo a vida passar.

 

O dia temido veio num sábado. Estava a se arrumar para ir à missa. Após poucos meses, aqueles pés haviam profanado o presente recusando-se a sequer entrar nos sapatos. Ousaram crescer. Vestiu a melhor roupa que tinha para pedir perdão pelo pecado. Não sabia que as mudanças estavam apenas começando. Precisava aprender sobre os ciclos. Era setembro e começava a chuva do caju no Nordeste.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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