KELMA JUCÁ

Feriado em primeira pessoa

Por Kelma Jucá | 06/05/2023 | Tempo de leitura: 2 min
Jornalista

“Acordei com vontade de ser eu, mas não sei por onde começar”, pensei. Era quarta-feira, pós-feriado prolongado e, apesar disso ou – sabe-se lá – por causa disso, acordara diferente. “Queria saber quem sou”.

Tratava-se de uma dúvida tão antiga quanto a própria existência – jamais elucidada com a assertividade que o tema merece. Após tantos dias à toa, naquele estado de letargia ruminante, me cansara. O ócio nos consome.

Quatro dias se passaram e nada produzira, a não ser o lixo que já se acumulava no pequeno apartamento. Isso de não fazer nada é mais letal do que a fadigada vida operária. Colocar um tijolo aqui e outro acolá na construção indelével da existência em sociedade nos ocupa de tal forma que esquecemos de quem somos. Não há tempo para questiúnculas deste substrato.

Ora, é tão mais fácil e prático acordar, meter-se no uniforme do serviço e dele só sair após a exaustão de um dia produtivo e de profundo teor colaborativo para o entorno. Do contrário, dias sem o valoroso propósito laboral nos tornam egoístas. Põe-nos a pensar e, ato contínuo, a refletir em toda uma dinâmica desenvolvida para nos dizer o que fazer e o que ser.

Quatro dias de folga aleatórios são um convite à autocrítica perigosa, ao emaranhado existencial, à crise de identidade. Enfim, não sei que nome dar ao incômodo de pensar em si, manhã, tarde e noite. “Não tinha o costume de flertar comigo”, concluo.

Bastaram uns poucos dias no revés da morosidade para entender que uma vida agitada cumpre o papel de lhe fornecer propósito. A semana dita o ritmo da felicidade. Que satisfatório é cumprir uma rotina, ter regras a seguir, metas a entregar. E como bônus vem o extra de sonhar com a folga.

Na marcha alucinante do expediente vulgar, não há tempo para pensar no sofrimento. Pode-se até sofrer. E se sofre, por certo. Mas parar os afazeres primordiais para matutar naquilo que nos angustia... Ah, isso não! No máximo, escorre uma lagrimazinha de tristeza quando se perde o ônibus de volta para casa, que é minimizada tão logo se assente na próxima condução rumo ao esperado descanso assalariado.

Quatro dias. Aí, não teve jeito. Tive de pensar. Por sorte, a semana, que começou curta, passou rápida. Logo seguida de outra de tamanho regular, e de outra, e de outra.

Com tanta coisa para gerir no serviço e em casa, foca-se naquilo que decididamente importa. O que comer, o que vestir, o que limpar, que botão apertar na grande engrenagem capitalista. Engolida pelo voraz e lascivo status quo dominante, concluí: “Estou a salvo”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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