Ideias

O revisor meticuloso e a errata do além

Por Guilhermo Codazzi |
| Tempo de leitura: 2 min
Jornalista e escritor, editor-chefe de OVALE

Metódico, Clóvis despertava o despertador todas as manhãs e, impaciente, murmurava sempre que o galo perdido em um canto atrasava no cacarejar. 

10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1... e Clóvis já estava de pé às 4h59. Há quem diga que o sujeito trazia no peito um relógio suíço, com cuco e coração tic-tac.

Era um homem soturno e misterioso, com corpo delgado e encurvado, graças a uma escoliose severa, barba e cabelo cortados, sem um fio fora do lugar, óculos fundo de garrafa e nariz adunco. Tinha 45 anos, aparentava 60. 

Vestia-se com elegância. Tons? Sóbrios. Sapato engraxado. 

Era apaixonado pela rotina.

Em seu acanhado apartamento, no centro, sistematicamente cumpria o rame-rame diário.

Passava o café, feito seguindo à risca a receita da saudosa mãe. Lia o seu jornal enquanto comia um pão duro e duas bolachas.

Depois, despedia-se da voz fantasmagórica do velho rádio valvulado e partia para o trabalho.

Seguia a pé pela São Paulo de 1950, em uma vida em PB.

Clóvis era revisor -- e é preciso dizer, o mais meticuloso de que já se teve notícia. 

Era o inimigo número 1 do erro -- um psicanalista mais atento fatalmente diria que o ódio contra o erro era de berço, uma vez que o tabelião o registrou com uma incorreção, trocando o ‘ele’ de Clóvis pelo ‘erre’ de Cróvis. Isso, nos documentos, era Cróvis. 

Clóvis era temido no jornal em que trabalhava. Era capaz de cuspir fogo quando via um vírgula fora de lugar. Uma vez, dizem os mais antigos, agrediu um repórter novato que fez uma confusão com o uso de uma crase e ainda o chamou de Cróvis.

Pouca gente ali, porém, sabia que Clóvis tinha uma paixão secreta: os obituários. Lia todos -- os do seu jornal e os da concorrência. Recortava os preferidos, para adicioná-lo à sua coleção. Nutria um sonho funéreo: ser o autor do seu próprio obituário e fazer dele um marco. 

Por anos, preparou o texto de sua vida -- e de sua morte. 

Quando chegou à versão final de sua obra-prima, Clóvis notou que faltava algo, um detalhe vital: morrer. Deixou, então, tudo preparado, meticulosamente organizado. Morte nobre, salvando a idosa distraída que atravessava a rua. Pareceria um acidente. 

O dia chegou. Antes do almoço, para economizar o dinheiro do PF, ele esperou a hora certa, tic-tac, na principal avenida da cidade e... pum! Foi um acidente, todos comentavam. No bolso do paletó, estava a carta endereçada ao editor do jornal, com a obra-prima de Clóvis. 

Não tinha erro. Ou tinha?

Apressado, sem tempo, o editor entregou o texto e os documentos de Clóvis para  um digitador novo, recém-contratado. ‘Morreu ontem o revisor Cróvis...’, escreveu ele, fiando-se cegamente no documento do falecido. 

E assim foi...

Não sei se é verdade, mas há quem diga que ainda hoje, décadas depois, o fantasma de Cróvis ainda vaga pela redação, no fim da noite, plantando sacis aqui e ali nos textos alheios. Seria a vingança do revisor, condenado a ser uma errata do além.

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