COLUNAS

Certeza ou incerteza? Eis a questão...

Por Francisco Estefogo | 31/03/2023 | Tempo de leitura: 4 min
São José dos Campos
Pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté

A sensação de ter a certeza dos acontecimentos e, em geral, de todo o comando das nossas vidas, a rigor, oportuniza um certo sentimento de segurança, estabilidade e continuidade. Normalmente, vamos para a cama certos de que iremos acordar no dia seguinte, de que a nossa rotina diária será como a de todos os dias, de que encontraremos os nossos entes amados e, assim, sucessivamente. No entanto, um deslize qualquer nessa rede de atividades, inclusive do nosso frágil e complexo corpo, que possibilita toda essa dinâmica de circunstâncias, pode nos levar a refletir que a nossa pseudo certeza era uma pura fantasia ou um desejo da nossa cabeça. Talvez, mais do que a indubitabilidade, o nascer do sol de um novo dia, um beijo de bom dia no nosso amor, ter o café da manhã posto à mesa e, no cair da noite, o afago dos braços de Morfeu, deus do sonho na mitologia grega, é, numa perspectiva filosófica, uma eternidade ou, então, para os mais espiritualizados, um milagre.

A pandemia da COVID-19, vilipêndio avassalador global, é um grande exemplo de como, de um dia para o outro, a convicção de que, à primeira vista, temos da constância do nosso existir pode ir por terra abaixo. No mais, assim como qualquer desastre natural, as chuvas torrenciais que devastaram boa parte de São Sebastião, Litoral Norte de São Paulo, há pouco mais de 1 mês, devem também ter sacolejado a certeza de que tudo ocorreria como de costume. 65 pessoas foram mortas e mais de 2.200 ficaram desalojadas. Muito provavelmente, não era esse o desfecho que permeava a convicção dessas vítimas horas antes do ocorrido. Oriundo dessas surpresas inimaginadas na nossa lista de eventos possíveis, é comum ouvir as famigeradas armadilhas humanas: “nunca imaginei que isso fosse ocorrer comigo”, ou ainda, “é a primeira vez que isso acontece”. No campo minado desse sentimento de certezas e incertezas, Marco Aurélio (121-180 d.C.), imperador e filósofo de Roma, acalenta-nos com o seguinte afago: “pense na existência como um todo, da qual você é apenas uma minúscula parte; pense em todo tempo em que você recebeu um momento breve e passageiro; pense no destino - em qual fração disso você está?” Afinal: "Todo oceano é uma gota no Universo", completa o imperador. "Todo o tempo presente é um pingo de eternidade", romantiza o pensador estoico.

Ademais, ainda na encruzilhada dessas, aliás, mais incertezas do que certezas e que, por isso, fogem ao nosso controle, Edgar Morin,antropólogo, sociólogo e filósofo francês, propõe que abracemos a veracidade dosfeitos que podemos de fato conduzir diariamente:  estimular a solidariedade e enaltecer consciência das verdades absolutamente humanas, ou seja, amizade, comunhão, compaixão, coletividade e amor.

Claro que, como seres humanos, é comum que planejemos o nosso fazer diário e, obviamente, o nosso futuro. Contudo, ter a certeza de absolutamente tudo pode nos amarrar em ideias e concepções que, no decorrer do tempo, aprisionam-nos em cárceres ultrapassados, conservadores, egoístas, monoglóssicos e preconceituosos. É preciso que nos desvencilhemos de determinados valores e juízos tidos como acertados para, por mais que pareça um espaço vazio, enveredar por campos desconhecidos e nos abrir para o novo, o diferente e o misterioso. Poderá ser, ao adentrar nessa nova aventura inexplorada, desguarnecida de perenidade, experiências já vividas e atividades já realizadas, que novos projetos e visões de mundo, de formas de ser e agir sejam construídos e, destarte, deem continuidade na vida real, repleta de solavancos, inseguranças e ambiguidades. Afora esse avanço, esse novo percurso em direção ao mundo incerto poderá ser a forma de respeitar a diversidade e a multiculturalidade que, a priori, estavam fora do nosso radar das verdades absolutas. Essa viagem, para além das certezas, poderá, portanto, fazer com que entendamos que todo modo de viver é legítimo e factível. No mais, poderemos igualmente descobrir e elaborar novas maneiras de ser, agir, desejar e viver. Esse movimento de criar e transcender é incondicionalmente da natureza humana.

Poética e idilicamente, Rubem Alves (1933-2014), psicanalista, educador, teólogo, e escritor brasileiro, puxa o nosso tapete da certeza e nos defenestra para um descampado abissal horizonte com apenas este alerta: “sonhamos o voo, mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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