No meio do caminho tinha história. Tinha história no meio do caminho.
Parafraseando o genial poeta Carlos Drummond de Andrade, essa história conta a aventura de um grupo de expedicionários que refez, em 2019, o caminho que desbravadores paulistas fizeram em 1596 para levar o ouro de Minas Gerais para Paraty, no Rio de Janeiro, e daí de navio para Portugal.
Já é bem conhecida a chamada Estrada Real, que conecta Minas ao Vale do Paraíba e Paraty, usada a partir do século 17 para escoar o ouro brasileiro. Esse caminho velho era, até então, o que se imaginava de mais antigo na história colonial do país. Não é mais.
Pesquisadores de Taubaté descobriram que há um caminho do ouro ainda mais antigo, desconhecido da maior parte da população e até de historiadores. Trata-se do Caminho do Ouro Paulista, e você é convidado especial de OVALE a embarcar nessa incrível viagem pela História do Brasil, do Vale e de Taubaté.
Três personagens se sobressaem nesse mergulho histórico e contaremos essa aventura com a ajuda deles.
Em 2008, a paleógrafa Lia Carolina Mariotto, que havia trabalhado no Arquivo Histórico de Taubaté por 30 anos, descobriu a existência de um caminho desconhecido analisando documentos seiscentistas. Um caminho que derivava de antigas trilhas indígenas e que perdera-se nas brumas do tempo.
Estudando principalmente inventários entre 1600 e 1700, ela percebeu que gente graúda mencionava um caminho do ouro que não estava nos livros de História.
“Nunca tinha estudado sobre uma estrada anterior ao caminho velho [Estrada Real]. Imaginei que teria alguém passando por lá, pois não teria razão uma estrada sem trânsito”, disse Lia.
NOVO MAPA
Coletando informações em documentos seiscentistas e depois recorrendo ao Repertório das Sesmarias, com dados a partir de 1700, Lia traçou no mapa atual o que seria o caminho do ouro paulista, de Paraty até Taubaté.
Descobriu que tal caminho fora trilhado pela primeira vez em pleno Brasil Colônia, em 1596, antes mesmo da criação do povoado (1639) e depois da Vila de São Francisco das Chagas de Taubaté (1645).
Nesse período foi aberta a Casa de Fundição em Taubaté para receber o ouro que vinha de Minas Gerais e seguia para Paraty. A casa funcionou a cerca de 200 metros de onde é hoje a Praça do Convento de Santa Clara, em Taubaté.
“O ouro vinha de Minas até Pindamonhangaba e entrava em Taubaté, pelo convento, e seguia na direção da Faculdade de Agronomia e vai sair no bairro Encruzilhada, em Cunha, seguindo para Paraty”, explicou Lia, traçando em roteiros atuais o caminho do ouro de 427 anos atrás.
Em 2009, a paleógrafa consolidou seus estudos publicando o artigo científico ‘Em busca de um roteiro esquecido: o caminho entre as vilas de Parati e Taubaté’ na Revista Filologia e Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP (Universidade de São Paulo).
“Mas qual não foi nossa surpresa ao perfazermos o trajeto! Existe ainda hoje, embora não pavimentada, uma pitoresca estrada entre Taubaté e Parati”, diz trecho da tese. “O percurso do trajeto ainda hoje existente comprova, in loco, a nossa hipótese sobre o traçado desse primitivo caminho que ligava o sertão ao litoral”.
HISTÓRIA ORAL
Antes da pesquisa da paleógrafa Lia Carolina Mariotto, o pesquisador e guia de turismo Silésio Francisco Tomé trabalhava, há quase 50 anos, no caminho dos Sertões de Taubaté, levando moradores e turistas para conhecer as rotas históricas na zona rural da cidade.
Na época colonial, o território de Taubaté ia de Arujá até perto de Bananal. Havia um núcleo central na cidade e o restante eram matas, os chamados sertões.
Silésio disse que ouvia dos mais velhos a história sobre um antigo caminho do ouro que passava por Taubaté. Aquilo o intrigava, até que ele conheceu Lia e seus estudos.
“Ela estudava a História na teoria. E eu ouvia a história oral, na prática. Os mais velhos falavam desse caminho. A gente resolveu juntar os saberes”, disse Silésio.
EXPEDIÇÃO
Confirmado o caminho do ouro em Taubaté na teoria e na oralidade, era hora de verificar na prática. Aí entra a jornalista, produtora de audiovisual e ativista cultural Cláudia Perroni, da TV Cidade de Taubaté.
Em 20 de março de 2019, eles juntaram um grupo de 12 peregrinos para refazer o caminho do ouro. Começaram pela Igreja Nossa Senhora dos Remédios, em Paraty, na beira do mar, e partiram em direção a Taubaté.
O mapa feito por Lia foi sendo confirmado a cada trecho da exuberante estrada, que passa principalmente pela zona rural de Cunha, Lagoinha, Taubaté e Pindamonhangaba, mas também por trechos urbanos. Os 120 quilômetros foram vencidos em três dias.
“Há uma história curiosa. Nesse caminho, no bairro do Monjolinho, em Taubaté, tem a Gruta do Grafite. Fizemos uma projeção de cinema nas paredes da gruta, para o povo da zona rural, no final de 2022. Passamos o filme ‘Monólogo do Ser Louco’. Foi uma maneira de marcar culturalmente a primeira expedição no caminho do ouro”, contou Cláudia.
NATUREZA E HISTÓRIA
Segundo os expedicionários, o Caminho do Ouro Paulista é exuberante e uma mistura única de natureza e História. Há paisagens marcantes a quem o percorre, como cachoeiras, a vista da Serra da Mantiqueira, fazendas antigas, construção históricas, igrejas seculares, imagens campestres de perder o fôlego.
Acostumado a percorrer os Sertões de Taubaté, até mesmo Silésio se deixou emocionar pelo caminho: “É uma sensação muito diferente, porque estávamos cumprindo um objetivo, andando na História. Fazer o caminho a pé, para estudo, como os bandeirantes. Para ser real, tem que ser a pé. Não foi fácil, mas valeu a pena”.
Após a expedição, os personagens partiram para o reconhecimento oficial do Caminho do Ouro Paulista, o que já foi feito pelos municípios de Lagoinha e Cunha. Taubaté o fez em outubro de 2022, depois de muita insistência. Falta Pindamonhangaba.
RECONHECIMENTO
Também no final do ano passado, foi protocolocado na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) o projeto de lei nº 89/2022, que reconhece oficialmente o Antigo Caminho do Ouro como patrimônio paulista.
“O caminho permite unir turismo e economia criativa. Esperamos o reconhecimento na Alesp e que a Secretaria de Estado da Cultura invista nesse caminho. Há um potencial gigantesco, seja paisagístico, arqueológico, arquitetônico, de ecoturimo e gastronomia”, afirmou Cláudia.
No final do ano passado, foi realizada a primeira viagem de ônibus levando turistas ao Caminho do Ouro Paulista, embora as condições das estradas tenham permitido que o veículo fosse de Taubaté até a divisa com Cunha.
“Essa é a luta que estamos travando. O caminho mostra a importância do Vale para a História do país. Temos que saber explorá-lo muito bem”, disse Cláudia.
Para Silésio, o caminho do ouro confirma que “Taubaté é a Capital Nacional da História” e que muito desenvolvimento poderá vir do ‘novo ouro’, o turismo e a economia criativa.
“O caminho nem é declarado oficialmente e já existe uma economia criativa, com diversos produtores rurais pelo caminho. Há um trabalho histórico já feito, ao contrário de outras estradas. Esse aqui existe e é questão de saber explorar bem feito”, afirmou o guia.
Para ele, o mais importante é a população de Taubaté e da região se apropriar dessa história e de tantas outras. Conhecer detalhes de como o povo se estabeleceu na região, os desafios e as conquistas. Afinal, a trilha do ouro ainda está lá, esperando cada um de nós descobri-la.
CRONOGRAMA HISTÓRICO
1596: Notícias dos primeiros desbravadores
1636: Jacques Félix recebe permissão para entrar no sertão de Taubaté
1693: Antônio Rodrigues Arzão (taubateano) descobre ouro em Minas Gerais
1695: montada a primeira Casa de Fundição de ouro em Taubaté
2008: paleógrafa Lia Carolina Mariotto traduz documentos seiscentistas e encontra o caminho de escoamento do ouro perdido na História
2019: expedição contemporânea caminha materializando a História
2021: Lagoinha reconhece oficialmente seu trecho
2022: Cunha e Taubaté reconhecem oficialmente seu trecho
2022: protocolocado na Alesp o projeto de lei nº 89/2022 de reconhecimento do Antigo Caminho do Ouro como patrimônio paulista
2022: realizada a primeira viagem turística em parte do trajeto
Comentários
5 Comentários
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Cícero Forain Filho 10/03/2023Gostei muito deste levantamento e tenho um história parecida com esta aqui em angra ou melhor tenho uma propriedade a qual existe uma estrada antiga e de pedras de nome Estrada do ouro e o traçado dela é exatamente da nossa região para Bananal em Sao Paulo .
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Victor José Domingues 08/03/2023Me orgulha como um taubateano, saber dessa história e me dá ainda mais argumentos para divulgar as histórias da nossa região tão rica culturalmente e tão pouco explorada turisticamente. Pediria aos governantes uma maior atenção e investimentos para promover o turismo no Vale do Paraná. Muito Obrigado a todos envolvidos nessa descoberta histórica e ao jornal O Vale por fazer essa divulgação.
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Marcos Marques da Silva 07/03/2023Muito bom o trabalho de vocês gostaria de saber se o trecho em Paraty é o já identificado pela Prefeitura de Paraty junto com o SEBRAE-RJ no ano 2000 quando foram colocados Marcos tipo toten
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Israel Domingues Ferreira Filho 06/03/2023Alguns assuntos que sei da história,é que o ouro vindo das minas Gerais, passavam por Taubaté, eram fundidos em barras,,passavam pelo bairro do registro (onde eram registradas as cargas),continuavam em direção à Ubatuba. Algumas pessoas que moravam pelos sertões da serra do Mar,falavam de um enorme Sino existente no pico da serra,,não se sabe exatamente onde, que era badalado quando a tropa lá chegava, informando à navios atracado nas imediações de Ubatuba, que o ouro iria descer a serra para embarque. Penso que algumas dessas tem fundamento. Também que o Sino era enorme e que deve ter se despencado para alguma entranha da serra do mar.
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Elias Adriano dos Santos 05/03/2023Parabéns aos pesquisadores, por essa nova descoberta de uma nova trilha do ouro saindo do vale do Paraíba,mais ainda muita trilhas a serem descobertas na qual o ouro era transportado pelo vale com destino ao porto de Paraty ou Mambucaba.