OPINIÃO

Somos todos gladiadores na apática arena social da competição?

Por Francisco Estefogo | 01/03/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté

Na escalada da evolução das sociedades modernas, sob o frágil véu do progresso e da prosperidade, a moderna dinâmica humana, muitas vezes, é guiada pela erosiva disputa com vistas aos lugares mais proeminentes no pódio “da vida”. Há inúmeras atividades sociais que são permeadas por um teor altamente competitivo: esportes, mundo corporativo e programas de TV, sobretudo, os relacionados à música, à gastronomia, aos jogos e ao entretenimento, dentre outros segmentos. Ademais, uma vaga numa universidade pública, amiúde, pode ser uma árdua e espinhosa via-crúcis, repleta de esforços hercúleos, inúmeros candidatos e parcas oportunidades. Nascemos, crescemos e reproduzimos o famigerado “quem pode mais, chora menos”.

Os gladiadores que deixam a apática “arena hodierna”, bem-sucedidos e com os peitos estufados, são sempre aqueles que ocupam os primeiros lugares nos “ranks”. Vistos como os “melhores” e os mais bem preparados, geralmente por conta das oportunidades desfrutadas ao longo da vida, normalmente sobressaem-se nas fabricadas hierarquias sociais em relação aos demais. É importante trazer à baila que o adjetivo “melhor” ou “pior” não deveria ser oportuno para descrever pessoas, já que, devido à nossa ímpar e única trajetória sócio-histórico cultural, e, portanto, por sermos genuinamente diferentes, temos, obviamente, talentos e capacidades diversas (todas absolutamente imprescindíveis para o funcionamento do tecido social).

O mais alarmante, no entanto, é saber que, infelizmente, o contexto escolar, eventualmente, também se organiza a partir de classificações atreladas ao mérito e a comparações. A lógica da competição alimenta o ressentimento, pois os que não conseguem alçar voos mais altos podem se sentirem incapazes, fracassados e sem reconhecimento algum. Nesse terreno, é muito comum a presença de termos como “protagonismo” e “empoderamento”, tanto nos documentos oficiais que norteiam a prática educativa, como na ambiência das escolas. Vale ressaltar que o protagonista pressupõe o antagonista e o coadjuvante. E o tal “empoderado” tem, à primeira vista, mais poder que alguém. Nesse sentido, o espírito coletivo não é, a rigor, considerado, valorizado, tampouco construído. Pelo contrário, fomenta-se o egoísmo e o individualismo, o que resulta em relações apáticas, letárgicas e, provavelmente, beligerantes. Como nos alerta Fernando Magalhães, filósofo brasileiro, “o grau de exacerbação do individualismo deixou para trás um passado inspirado em ideias de solidariedade e estimulou uma sociedade tacanha que forjou uma sociedade completamente apática”.

À vista desse fenômeno da contemporaneidade, a seara da educação de qualidade, majoritariamente permeada pela narrativa competitiva, passa ser a concorrência com base na abundância e na importância de conteúdos escolares, em oposição à construção da cidadania e ao bem-comum, com foco na força da coletividade. Indubitavelmente, a excelência acadêmica é central para se enveredar avanços científicos e tecnológicos. Contudo, a cultura dos “ganhadores” e “perdedores” precisa ser ponderada e superada. Frente a essa inoportuna dicotomia, Michael J. Sandel, filósofo estadunidense contemporâneo e professor de Harvard, preconiza um exame mais elaborado e minucioso sobre os conceitos no que tange ao triunfo e à derrota, bem como a dinâmica da humildade na tentativa de transcender uma sociedade demasiadamente polarizada e desigual, de modo a construir atividades sociais mais democráticas, coletivas, justas e compartilhadas.

No avesso da arena moderna da competição enormemente atravessada pela meritocracia, bem como da afirmação de Sandel, ou seja, “quem faz sucesso tende a achar que é graças a si mesmo”, a filosofia Ubuntu apregoa a práxis humana por um viés de convivência harmoniosa e calcada na categoria do “nós”, como elemento imperioso no cenário social. Ademais, resgata que a essência humana é parte de um universo maior e coletivo, assim como articula o respeito pela comunidade, pela integração da sociedade e pelo bem-comum. Mahatma Gandhi, líder político e religioso indiano, ratifica essa concepção de vida ao asseverar que “há dois tipos de pessoas: as que fazem as coisas, e as que dizem que fizeram as coisas. Tente ficar no primeiro tipo. Há menos competição”.

Em relação à selvageria do dia a dia, entremeada pela rivalidade insana e pelo visceral embate, em busca da riqueza material, do poder e dos mais altos lugares no topo da pirâmide social, eclipsando, destarte, o preponderante papel do outro para o nosso pleno fazer, ser e agir, Slavoj Zizek, filósofo esloveno, oferece-nos a seguinte reflexão: “estamos presos em uma competição doentia, uma rede absurda de comparações com os demais. Não prestamos atenção suficiente no que nos faz sentir bem porque estamos obcecados medindo se temos mais ou menos prazer do que o restante”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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1 COMENTÁRIOS

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  • Maria Cecília Camargo Magalhães
    07/03/2023
    Fran, bem oportuno seu texto e extremamente importante para pensarmos e refletirmos sobre nossa vida e nosso fazer, ser e agir, Como salienta Slavoj Zizek, filósofo esloveno- \"estamos presos a uma rede de comparação...