BRANDSTUDIO

O juiz e o menino

Por Filipe Levada | 16/12/2022 | Tempo de leitura: 4 min

Divulgação




Num vinte e cinco de outubro, desisti de ser juiz. Era noite, véspera de meu aniversário, e eu estava em um restaurante com minha esposa. Brindávamos a isso e àquilo e conversávamos sobre a viagem que faríamos no dia seguinte, para Maceió. Queria comemorar na praia os trinta e poucos anos de idade e a alegria de estar vivo – e bem. Nada indicava, portanto, que, ali, naquela mesa, eu diria "eu não quero mais ser juiz".

Dias antes, havia julgado um dos casos mais dolorosos com que já me deparei. Um sargento da polícia militar havia sido acusado de estuprar cinco mil vezes as filhas. Duas meninas, que começaram a ser violentadas por volta dos cinco anos de idade e aos mais de vinte continuavam a ter de se submeter às crueldades do pai. Este, no entanto, tratava os atos com naturalidade, agindo como se estivesse diante de um direito seu. Elaborava uma planilha e as filhas eram obrigadas a ir ao quarto dele quando chegasse a respectiva vez.

As moças eram extremamente educadas e estudiosas. Relataram-me, em audiência, que estudavam o mais que podiam porque o pai só não as estuprava quando estivessem estudando. E por isto estudavam e estudavam, sem esperança de que aquilo fosse um dia acabar. Mas a situação teria um fim.

Um dia, na escola, a filha mais nova confidenciou à professora que intentava se matar. A irmã mais velha havia feito um acordo com o pai: se submeteria aos desejos dele, sem reclamar, desde que poupasse a irmã menor. E isto ela não aguentou. Ao ver a irmã sendo violentada para poupá-la, a menina resolveu que poria fim ao inferno dando cabo da própria vida. Mas antes contou à professora, a professora contatou o conselho tutelar, o conselho tutelar acionou o Poder Judiciário e o sargento foi preso. Meses depois, eu o condenaria a mais de cem anos de prisão.

 – Eu não quero mais ser juiz. Veja este caso – foi o que eu disse.

No dia seguinte, pegamos estrada rumo ao aeroporto, mas algo ocorreu que o trânsito parou por completo. Um acidente, talvez. As horas passaram e perdemos o voo. E não havia outros para o mesmo dia. Contudo, como ainda queríamos ir à praia, compramos passagens para o dia seguinte e resolvemos dormir em um hotel em Guarulhos. E o hotel não tinha restaurante.

Precisando almoçar, caminhei até uma lanchonete e lá teria entrado, sem qualquer atropelo, se duas crianças não tivessem me abordado. Estavam com fome. Perguntei se queriam algo e disseram que sim, um sanduíche. E evidentemente não me passou pela cabeça negar. Vi, entretanto, que ali havia uma terceira criança, um menino, e questionei se também não queria. Ele me olhou com raiva e disse que não. Mas a questão não era um querer. Ele precisava comer. Tinha fome.

Entrei na lanchonete, comprei o almoço e pedi três lanches. Entreguei dois às crianças que haviam pedido e chamei a terceira – o menino. Dei-lhe o lanche, ele agradeceu e virou as costas. Mas então – não sei por que, jamais saberei por que – chamei-o e lhe perguntei:

 – Menino, o que você quer ser quando crescer?

Ele me olhou firmemente e falou com convicção:

 – Eu serei juiz.

 – Você será juiz, menino.

Naquele vinte e seis de outubro, decidi que jamais diria novamente "não quero mais ser juiz". Eu não tenho esse direito. Não em um país injusto como o nosso.

Eu me pego pensando por qual razão o menino queria ser juiz e não vejo razão a não ser algum magistrado ter tido uma passagem especial na vida dele. E então fico feliz de ter atuado no caso do sargento. Naquele dia, com aquele julgamento, pude tornar a vida de uma família melhor.

E então agradeço: obrigado, menino.



Filipe Levada
é juiz de Direito do Estado de São Paulo, doutor e mestre em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo), membro colaborador da Fundação Carlos Chagas, professor assistente do Curso de pós-graduação em Contratos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COGEAE). Filipe Levada também é filho do saudoso desembargador Claudio Levada, que ocupou o Órgão Especial, a 34ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo e foi o 1º vice-presidente da Apamagis no biênio 2018/2019.

*Conteúdo produzido pela Apamagis (Associação Paulista de Magistrados). As informações não necessariamente refletem a opinião de OVALE.

Receba as notícias mais relevantes de Vale Do Paraíba e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.