KELMA JUCÁ

O lugar do vazio

Por Kelma Jucá | 16/12/2022 | Tempo de leitura: 2 min
Jornalista
OVALE

O lugar do vazio
O lugar do vazio

A gente aprende tão logo nasce. Dói, inclusive. O primeiro ato contínuo que fazemos ao nascer e que dele dependeremos até o último suspiro: respirar.

Nossos pulmões se abrem para o novo. Trata-se da nossa primeira autonomia na vida. O legítimo grito de independência! A gente sai do útero da mãe, chora e, pela primeira vez, respira oxigênio.

E o que é o respirar se não ato-reflexo de inspirar e expirar? Internalizamos a função de modo tão espontâneo que sequer refletimos a respeito no dia a dia. Somente naquelas situações mais tensas, falamos: “Preciso respirar!” – embora saibamos que estejamos, sim, respirando. Agora mesmo, você também está respirando! E o fará até o fim.

Foi numa fadiga extrema, após pedalar 40km em meio a subidas e descidas de morros diversos, que me dei conta de que precisava expirar. Apesar de ser fisiológico, eu nunca havia pensado sobre o tema.

É que todos falam sobre o valor da inspiração, tanto no sentido real como no figurado. O termo aparece com roupa de gala até na poesia quando, por exemplo, se comenta sobre a inspiração do autor. Surge como mantra na sociedade contemporânea, embalada numa prece vendida como fórmula do equilíbrio interior: “Respira. Inspira. Não pira.”

Já a expiração – coitada! – é renegada, jamais lembrada ou citada. Se estivéssemos falando de literatura, à expiração, dar-lhe-iam a alcunha de gênero inferior. E note! Não existe inspirar, sem expirar. É preciso colocar tudo para fora, antes de começarmos um novo ciclo. A gente libera o gás carbônico para receber oxigênio. Limpamos a casa para receber a mudança.

Em linguagem figurada, refiro-me essencialmente ao lugar do vazio. É onde nada existe que há espaço para que tudo possa surgir. No silêncio, mora a mais linda canção a ser criada na mente do poeta. Anterior à La Guernica, Picasso tinha à frente uma tela em branco. David de Miguel Ângelo já fora tão simplesmente um bloco de mármore de carrara.

Às vezes, tudo o que a gente precisa é deixar ir, abrir mão, dizer adeus. Quando a gente libera todo o ar rarefeito que nos sufoca a paz e o juízo, ganha espaço para um novo ar entrar. Basta que o lugar esteja vazio. E que paremos de acumular lixo imaterial que só nos intoxica a alma.

Numa expiração qualquer, pode até surgir fortuitamente a inspiração maior da vida. Aquilo que nada é, pode se tornar qualquer coisa. O lugar do vazio é potência.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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