KELMA JUCÁ

Mundo cão

Por Kelma Jucá | 19/11/2022 | Tempo de leitura: 2 min
Jornalista

Divulgação

Mundo cão
Mundo cão

Oswaldo era um cachorro de direita que levava uma vida classe média. O tutor lhe comprava uma ração de marca famosa, daquelas que aparece nos comerciais de televisão aberta. Quando sobrava um dinheirinho no fim do mês, era levado ao pet shop para tomar banho com xampu neutro. O passeio privilegiado lhe permitia sentir o vento no focinho gelado enquanto apreciava a paisagem da periferia na janela do celta preto.

Não gostava de ver cães Sem Raça Definida (SRD) por aí. É que embora tivesse acesso ao espelho e à educação básica, era carente de senso crítico. Não sabia que era ele mesmo um legítimo vira-lata. Achava uma feiura só quando via a mistura de Yorkshire com Poodle, por exemplo.

Obeso de ideias retrógradas, tinha um andar vagaroso. Julgava-se um Rottweiler; era um caramelinho com grandes manchas pretas e uma barriga proeminente de gases por conta da gastrite adquirida com o passar da idade.

Nas poucas vezes em que saía de casa, observava os cachorros magricelas sem teto e revirava os olhos quando ouvia os seus latidos de ajuda. Oswaldo via com saudosismo a época da carrocinha. “Tempo de higiene social”, pensava. Analfabeto político, não sabia que ele corria o risco de ter o mesmo fim daqueles que viviam à margem da sociedade canina.

A situação mudou para Oswaldo na tarde modorrenta de uma segunda-feira. Foi quando Oswaldo perdeu seu tutor para a Covid-19. Assim... No susto! O dia anterior de febre e calafrios do velho humano marcaria o resto dos seus dias de cão. Oswaldo foi expulso da casa em que morara nos últimos onze anos pelos filhos de seu tutor, ficando, assim, pré-destinado ao acaso.

A rua virou seu lar e a solidão, sua única companhia. Passava o dia chafurdando entre uma lata e outra de lixo. Sempre faminto, a vida era catar um pão velho, um resto de fast-food ou um mamão apodrecido nas ruas da suburbana cidade.

Perdido e já cansado de muito andar atrás de um osso com restos de carne, viu passar por ele um gato caolho que corria aos miados ziguezagueando o asfalto. “Que falta faz uma carrocinha”, queixou-se Oswaldo para si mesmo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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