A história da democracia é escrita a lápis?

Por Guilhermo Codazzi | 08/10/2022 | Tempo de leitura: 2 min
Jornalista e escritor, editor-chefe de OVALE

Divulgação

Tinta.

Faz tempo, é verdade, mas ainda me lembro bem da sensação de trocar o lápis pela caneta esferográfica. Tratava-se de um rito de passagem na vida escolar, um sinal de que o estudante já estava crescido o suficiente para escrever convicto, com tinta e não grafite, sem usar a borracha depois.

Para empregar uma palavra que anda na moda, a caneta empoderava o aluno. Com vocês também foi assim? Alguém aí se recorda daquelas canetas com dezenas e dezenas de cores? Ah, sim, claro, e com cheiro de tutti-frutti.

Jamais fui um aluno brilhante, é verdade, mas sempre contei com aulas particulares em casa, com a minha mãe, Adriana, excelente professora -- de disciplinas variadas e das lições da vida, aquelas que não caem nas provas, porém são indispensáveis que a vida nos coloca à prova ao longo do tempo (o tempo todo).

Com os olhos mais lindos que já vi, que me lembram as cores que tremulam na bandeira argentina, sua pátria, a minha mãe ensinou aos meus dois irmãos -- a Marina e o Julio -- e eu valores que não têm preço, são inegociáveis, tais quais o apreço à liberdade.

Estudante de arquitetura, atriz e desenhista, pintora e escultora, e com uma série de outros talentos incríveis, ela nos criou em meio a um ambiente com música, teatro e poesia. Falando em escola, em poesia, foi na sala de aula que eu tomei conhecimento da existência de um poeta chileno chamado Pablo Neruda (1904-1973).

‘É verdade que um condor negro sobrevoa minha pátria noite?’, escreveu ele, falando sobre a sombra do autoritarismo, nas páginas do seu aclamado ‘Livro das Perguntas’.

No último dia 6, aniversário da minha mãe, ao telefone, ela contou-me que estava lendo um livro intitulado ‘A noite dos lápis’, que narra a triste história real de adolescentes argentinos que, no ano de 1976, foram sequestrados, torturados e mortos pela ditadura de Jorge Videla -- parte integrante da Operação Condor.

Os alunos secundaristas tinham a idade da minha mãe, que naquele mesmo ano se mudaria para o Brasil. “E eu estou aqui por eles”, disse ela, antes de desligar. Há quem queira apagar, torturar a história. Passar por sobre ela, a borracha do negacionismo histórico, do revisionismo de turno. É, trata-se de um ledo engano.

Afinal, a história de luta a favor da democracia não é escrita a lápis, caneta e, muito menos, na base da canetada... Neruda escreveu: “Por que é que nos tempos sombrios / se escreve com tinta invisível?”. Pois é. Seja qual for o idioma, a história é escrita com a tinta do amor à liberdade.

OLHOS VERDES
Uma dica de filme que me lembra minha mãe: ‘O Segredo dos seus Olhos”, película de 2009.

RIO INVISÍVEL
Em um verso, escrevi que ela era ‘um rio estrangeiro exilado em mim”. E todo rio que corre livre já é mar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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