Guilhermo Codazzi

Tudo vale a pena se a alma não é pequena

Por Guilhermo Codazzi é jornalista, escritor e editor-chefe de OVALE | 10/09/2022 | Tempo de leitura: 2 min

O Cabo do Medo.

Com ondas descomunais, altas o suficiente para tocarem o céu, o Cabo do Bojador era habitado por monstros terríveis, com um instinto assassino implacável, e tinha em suas traiçoeiras águas gigantescos buracos, que tragavam embarcações para o inferno. Essa era a visão horripilante de navegadores europeus a respeito deste pedaço do mapa da África banhado pelo Atlântico, o 'oceano tenebroso', cemitério de navios -- e marinheiros.

Gil Eanes, no ano de 1434, tornou-se o primeiro navegador europeu a dobrar o Cabo do Medo, feito este lembrado quase cinco séculos mais tarde por um outro português, que singrava o mar das palavras: Fernando Pessoa.

Poeta, Pessoa publicou no ano de 1922, cem anos atrás, um dos poemas mais celebrados de sua obra. 'Mar Português' lançou-se ao oceano da literatura nas páginas da revista 'Contemporânea', integrando dois anos mais tarde o livro 'Mensagem', com versos sobre a época das grandes navegações lusitanas.

"Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar!", dizem os versos iniciais do poema, complementado logo em seguida por seu trecho mais conhecido em Portugal e, certamente, no além-mar.

"Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor".

Para dobrar o Cado do Medo, é preciso ter resistência à dor. Saber enfrentar o sofrimento.

Escritos há um século, os versos de 'Mar Português' são atemporais, cabem feito luva hoje em terras brasileiras, que celebraram o Bicentenário da Independência -- ou melhor, assistiram sua data pátria ser 'sequestrada' por um projeto eleitoral que ameaça instituições e ataca a democracia.

Além de poeta, Pessoa exercia ainda outras atividades profissionais, tais como filósofo, ensaísta e, entre outras, como comentarista político. Em 1935, ano de morte do escritor nascido em 1888, ele publicou duros textos contra regimes autoritários na Europa.

Transportando os versos para o Brasil de hoje, que ouve o presidente da República declarar que golpes militares como o de 1964 -- que cerceou liberdades, matou e torturou nos porões da história --- 'podem se repetir', a palavra mar poderia ser facilmente trocada por uma outra, de significado também grandioso: democracia.

"Seguramente passamos por momentos difíceis, a história nos mostra: 22, 35, 64, 16 e 18. Agora em 22. A história pode se repetir. O bem vencendo o mal", afirmou o transitório presidente do Brasil.

Não, não pode se repetir, Bolsonaro. Afinal, quantas mães-pátrias choraram para que a liberdade tremulasse como bandeira no peito de cada pessoa?

Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. E ela é maior do que o cabo -- e o capitão -- do medo. "Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu".

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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