Kelma Jucá

Uma procrastinadora em ação

Por Kelma Jucá, jornalista em São José dos Campos | 23/09/2022 | Tempo de leitura: 2 min

Kelma Jucá
Kelma Jucá

Só mais cinco minutos na cama. E seis da manhã viram oito horas.

Depois eu começo a academia. O ano acaba e as desculpas também.

Depois começo aquele relatório do serviço. Chega a véspera da entrega e uma madrugada insone em meio à labuta tardia.

Depois eu vejo no dentista aquela dor irritante, mas aceitável. E um dia descubro que preciso extrair o dente.

Depois faço uma visita à minha avó Luiza. Até que me deparo sem um avô vivo.

Depois eu saio com os amigos. Num piscar de cílios, não sou mais aquela adolescente sem obrigações.

Depois eu passeio com Romeu e Juninho. Veio o divórcio e eu não fiquei com os cachorros.

Depois eu começo a dieta para caber num tubinho branco. Organizei as roupas e doei o vestido sem nunca usá-lo.

Depois eu ligo para meus irmãos de coração. Eles têm filhos, se formam e ganham o mundo e nos distanciamos.

Depois eu passo no supermercado. Chego em casa e não tem nada para comer.

Depois eu escrevo uma cartinha para minha afilhada. Beatriz já tem quase 18 anos.

Depois eu junto dinheiro. Vem uma crise e me pega de saia justa.

Depois eu invisto no inglês. Aí, eu perco uma oportunidade de trabalho por não dominar o idioma.

Depois eu cuido da minha espiritualidade. Surge uma pandemia e me deixa neurótica.

Depois eu leio Dante Alighiere. O mês se finda, mas o livro não.

Depois eu marco um café com as amigas. As férias terminam.

Depois eu faço aquele curso. Acabam as inscrições.

Depois eu compro aquele sapato. Volto na loja e o levaram.

Depois eu faço as minhas velas perfumadas. Passam-se os dias e eu esqueço o que aprendi no curso.

Depois eu planejo o feriado. Logo chega a segunda-feira.

Depois eu realizo o meu sonho. Eu mudo e mudo de sonho.

Depois eu olho pra mim. Sem que eu perceba, não sei mais quem sou. E de muito não me olhar, já não me enxergo. E me torno alheia a mim mesma. Hospedeira de uma alma desconhecida. Estrangeira de quem fui um dia, perdida no meio do caminho.

Depois da meia-noite, viro a esquina e já tenho 80 anos.

Só mais cinco minutos. Paradoxalmente, o tempo passa e sempre está aqui; a gente é que não.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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