A confusão começa cedo, cedo mesmo. Daquelas que nascem inocentes, sem maldade nenhuma. Alguém pergunta, com a melhor das intenções: Como muda pé de café?
E o outro, meio surdo, meio distraído, meio com fome, entende: Como? Muda? Pede café?
Pronto. Um queria plantar, o outro já levantou da cadeira procurando açúcar, colher e um coador. E assim nasce um dos maiores clássicos da comunicação humana: ninguém está errado, mas ninguém se entende.
Na escrita, tudo parece mais comportado. O papel não corre, não tropeça na sílaba, não boceja no meio da frase.
Como muda pé de café? é pergunta de roça, de chão batido, de mão suja de terra. Quer saber como transplantar a planta, tirar a muda de um lugar e botar noutro sem matar o coitado do cafeeiro.
Já Como muda pede café? é outra conversa. Aqui não tem enxada, tem gente. Quer saber como uma pessoa muda se comunica pra pedir um cafezinho. É linguagem, é gesto, é comunicação, não é lavoura.
O problema mora na fala. Falada rápido, sem pausa, sem contexto, vira um embrulho só: “comumudapédecafé”.
A boca não coloca vírgula, o ouvido não tem legenda, e o cérebro faz o que dá. Às vezes acerta, às vezes inventa. Daí nasce a confusão, essa velha amiga da humanidade que nunca perde o endereço.
Desde o tempo das cavernas é assim. Primeiro veio o som: grunhidos, berros, tentativas desesperadas de avisar perigo ou pedir comida. Depois inventamos a escrita achando que ia organizar a bagunça. Não organizou nada. Só deixou o mal-entendido mais chique. Quando misturamos som, letra e gesto, criamos a comunicação completa… e a confusão completa também.
Por isso a língua vive armando pegadinha. Um verso vira armadilha sonora: “Meus amores por ti gela, Meus afetos por ti são…”.
Tem quem leia poesia, quem ouça receita, quem ache que faltou um “ção” no final e quem desconfie que o autor escreveu depois de três doses.
E tem ainda quem complique de propósito. Fala difícil sem necessidade nenhuma: Qual a remuneração pecuniária necessária para transpor-me deste polo a outro hemisfério…
No fundo, só queria saber quanto custa a passagem. Mas ninguém pergunta, todo mundo finge que entendeu, e o discurso vazio vence de novo.
A tecnologia deu uma boa piorada nisso tudo. O celular trocou a boca pelo dedo. Agora é vc, tb, blz, kkk, bjo, obg e, nos dias de menos paciência, um sonoro VTNC acompanhado de PQP. A fala encolhe, a escrita vira bilhete de geladeira e o entendimento fica pelo caminho.
Curiosamente, quem salva a confusão é o corpo. Na Libras, as duas frases jamais se misturam.
Para mudar o pé de café, o corpo mostra planta, raiz, terra, troca de lugar.
Para pedir café, é outra cena: pessoa, xícara, gesto de beber, pedido claro. O corpo vira legenda viva. Onde a fala escorrega, o gesto explica sem pedir desculpa.
E assim seguimos nesse rio linguístico meio barrento, cada vez mais rápido. Para onde vamos desaguar? Moralmente, talvez atrasados. Comunicativamente, confusos. Mas enquanto alguém ainda confundir muda pé de café com muda pede café, a língua segue viva: tropeçando, rindo de si mesma e, de vez em quando, derramando café no chão.
No fim das contas, comunicar não é falar bonito. É fazer o outro entender. Nem que seja apontando pra planta, levantando a xícara… ou servindo logo o café antes que a conversa desande de vez.
Porque, convenhamos: se for pra errar, que seja com cafezinho quente na mão. Não se confunda, tenha certeza.
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