Portal é palavra poderosa. Muito antes de sinônimo para plataforma on line, foi por milênios referência a portas físicas de templos e cidades. Até que a linguagem poética apropriou-se dela e a alçou a patamar simbólico, com o sentido de passagem para o mundo espiritual, acesso à transcendência, ideia de entrada em caminho diferente. Seu uso metafórico a tornou perene.
Olhar um portal é dar-se conta da ideia que subjaz ao termo de raiz latina. Símbolo de nova jornada, traz implícito o limiar, aquele ponto de não-retorno entre duas situações e assim remete também ao conceito filosófico que regista a impermanência da realidade, sua ininterrupta transformação.
Encontrar-se diante de um portal é permitir à consciência abrir-se para a possibilidade de que o espaço ou o tempo prestes a serem deixados representam tanto a ruptura com o presente como a aceitação de que o futuro iminente pode trazer avanços ou, pelo menos, outra forma de existência com progresso. Portal é mais que marco, é convite à travessia.
Sob esses aspectos, o Portal Carolina Maria de Jesus, inaugurado em nossa cidade na última quinta-feira, Dia da Consciência Negra, cria oportunidade para várias reflexões a respeito da homenageada, do autor da homenagem e do perfil da comunidade francana que traduz em grande parte o da maioria da população brasileira.
Carolina é ícone. Sua vida e obra testemunham a luta que se trava contra o racismo, o preconceito e o arbítrio desde o período da colonização aos nossos dias. Nascida em Minas, com passagem por Franca, e já adulta moradora de favela em São Paulo, sua experiência de vida foi detalhada em diário que, transformado em livro, teve por título ‘Quarto de Despejo’. Esta obra revelou ao Brasil a realidade brutal da pobreza, da fome e do preconceito nas camadas mais vulneráveis da sociedade. A escrita visceral a alinha a obras expressivas de autores que, desde a Abolição apenas formal em 1888, denunciam a marginalização contínua que sofrem os pretos em nosso país. Em páginas pungentes, que no futuro seriam traduzidas para vários idiomas, a escritora expôs com clareza e em linguagem dura a falta de inclusão social e a desigualdade de direitos que vivenciou na própria pele durante toda a vida.
Ao incorporar ao programa de celebração do Dia da Consciência Negra a inauguração do Portal e da praça que o acolhe, autoridades do município revelaram discernimento e sensibilidade. Reconheceram o mérito da mulher em sua resistência e da escritora em sua capacidade de traduzir, com letras manuscritas em papel de embrulho, não só a sua história, mas sobretudo a dos negros brasileiros que, mesmo após a extinção legal da escravidão, continuaram a enfrentar novas formas de opressão.
Foi por considerar na literatura de Carolina uma narrativa que desvela grande coragem feminina e luz a iluminar a luta por verdadeira igualdade racial e social, que o jurista, escritor e acadêmico José Lourenço Alves, cidadão francano por direito de conquista, sonhou o Portal que desde a quinta-feira pode ser apreciado no alto da Estação, defronte da Mogiana, espaços de grande importância histórica para nossa população e para a própria Carolina, que dessa estação de trem partiu para jornadas difíceis que se tornariam exemplares graças à sua imbatível resiliência.
Lourenço, que em múltiplas atividades culturais e acadêmicas manifestou reverência pela escritora, custeou a maior parte da execução do projeto e mobilizou parceiros locais para concretizar a obra idealizada. O corte da estrutura metálica coube à empresa Gueraço, e a soldagem à Tratomag. Michelle Campos e Tuanny Miller assinaram a arte gráfica. Além do evidente valor artístico, o monumento realça a importância da memória, da representatividade e da cultura local. “O projeto foi pensado com o coração e realizado com o apoio de pessoas que acreditam no poder transformador da arte”, destacou o autor da homenagem em entrevista ao GCN.
Seria então oportuno, quando não de justiça, destacar algo incomum nesta iniciativa que leva beleza e informação à comunidade francana. Brasileiros, vivemos numa sociedade consumista, afeita ao descartável, caracterizada pelo imediatismo, com pouco apreço à literatura, quando não às artes em geral, e esquecida do papel que os mecenas representaram um dia na cidade conhecida então como “Atenas da Mogiana”. Diante disso, é com surpresa que se veem gestos como os de José Lourenço Alves, que não oferece apenas bens artísticos materiais à comunidade- e o plural se justifica pelo fato de que há dois anos, na mesma data, ofertou a Franca um monumento para que sempre nos lembremos de Zumbi, emblema nacional da luta pela liberdade e pelo reconhecimento da herança afro-brasileira. Ele doa algo de muito maior valor que o pecuniário.
Doa tempo, energia, dedicação, empenho e a beleza do sonho de mostrar seres que o comoveram porque falaram de causas que continuam sendo também as suas e a de outros cidadãos. Um deles o também acadêmico José Antônio Pereira, que em artigo lúcido e comovente publicado no dia 20 no portal GCN , sob título ‘Consciência Negra’, assim se manifestou: “Já compreendemos que nós é que nos libertaremos, mas não sozinhos, porque somos parte do grupo humano. Desde o primeiro dia após o 13 de maio de 1888, temos construído um modo de nos sentirmos dignos, de ascender como como raça, para além dos valores que foram introjetados em nós, negros, brancos, amarelos, vermelhos e outros e que nos levou a esta percepção inferiorizante de pessoa negra. Sem dúvida, é hora de deixarmos de lado nossas justificativas individualistas, baseadas na democracia racial, na tentativa de apagar o que a maioria vive: discriminação e preconceito.”
Sem dúvida é hora de todos nós francanos olharmos também com o coração para o lindo Portal que eterniza o nome de Carolina Maria de Jesus. E ao fazê-lo, dessa forma especialmente afetiva, deixarmos para trás o tempo da discriminação e do preconceito. Atravessá-lo é ato de escolha, tendo em vista que a mudança só se materializa com a travessia, rito de passagem. Marco inaugural, não deve representar apenas um preito, ele precisa traduzir a exigência de mudança da parte de todos para que a vida continue, como processo que é, em fluência e evolução.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras
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