Conheci Carlos de Assumpção nos bancos universitários. Ambos cursamos Português e Francês na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Franca, hoje Unesp. Já naquela altura, final dos anos 60, ele, mais velho que os colegas, se distinguia da turma pelos manifestos ideais humanistas e posições antirracistas. Mas sua modéstia não o deixava compartilhar conosco poemas autorais que já eram então conhecidos em círculos culturais paulistanos, especialmente aqueles vinculados ao Movimento Negro. Só alguns de nossos professores tinham conhecimento do percurso de Carlos que em 1958, aos 31 anos, havia recebido o título de Personalidade Negra, no 70º aniversário da Abolição, conferido pela Associação Cultural do Negro, em São Paulo. Esses mestres reconheciam seu talento para as Letras e de vez em quando comentavam em classe um de seus poemas, “Protesto”, cuja segunda estrofe já traz explícito o propósito que nortearia toda a poesia de Assumpção: “Senhores/ Eu fui enviado ao mundo/Para protestar/ Mentiras, ouropéis, nada/ Nada me fará calar”.
Apesar da participação intensa na cena cultural da capital paulista, e depois, na de Franca, cidade onde se fixou e passou a exercer o magistério e a advocacia, apenas em 1982 surge a primeira edição do livro “Protesto”, que reunia os poemas mais conhecidos. A segunda sairia bem depois, em 1988. Mais uma vez fez-se pausa no âmbito da publicação, o que não significa que não houvesse produção. Carlos de Assumpção continuava mais criativo que nunca, escrevendo para jornais e revistas, mas no Interior as dificuldades para publicar livro eram então quase intransponíveis. Em 2000 aparece “Quilombo”, seguido em 2002 por “Tambores da Noite”, ambos recebidos com aplausos da crítica e de leitores. Em 2020 vem a público “Não pararei de gritar”, bonita edição com a chancela da Companhia das Letras, que tomou por título o verso homônimo: “Mesmo que voltem as costas/Às minhas palavras de fogo/Não pararei de gritar/Não pararei/Não pararei de gritar.”
Ano passado, quando o poeta completou 97 anos com impressionante vigor intelectual, o público foi contemplado com “Poemas Escolhidos/ Poemas Pedagógicos”, e-book que pode ser baixado gratuitamente no site Artefato. Todo título acaba por fazer a síntese da obra porque não é escolha desprovida de intenção ou afeto. Ao redor do mundo, bibliotecas e livrarias mostram “Poemas Escolhidos” de diferentes autores e idiomas. Às vezes o trabalho de escrutínio é da editora responsável pela publicação, que designa um especialista para mergulhar no delicado trabalho de selecionar certo número de poemas no rol dos oferecidos. No caso presente, a seleção foi do próprio autor, o que alcança significado mais profundo, na medida em que refletiu o desejo de colocar juntos poemas costurados com a mais fina linha da unidade temática. E, na inovação do apêndice ou adendo, “Poemas Pedagógicos” descortinou um conceito de poesia que junta ao caráter imanente de emocionar, a função ética de educar para um sentimento de humanidade que em tempo de Inteligência Artificial, sistema capitalista e persistência de preconceitos precisa ser melhor cuidado. Poemas conhecidos e outros inéditos formam duas camadas semânticas que se abraçam e fazem girar quatro eixos fundamentais da poética de Carlos de Assumpção: memória, indignação, resiliência, esperança.
Por memória entenda-se o imprescindível resgate de fatos que trazem à tona a tragédia da escravidão protagonizada por pais, avós, ascendentes e toda a gente que sofreu os horrores da exploração, da crueldade, do banimento que ainda vigoram no país onde a desigualdade é gritante e exige que o poeta levante sua voz, ao mesmo tempo ancestral e contemporânea: “Este país meus irmãos é fruto/De sementes de sacrifício/ Que os meus avós plantaram/ No solo do passado/ Há muitas histórias/ Sobre meus avós/ Que a História não faz/ Questão de contar.”
A indignação, sentimento moral tão ligado à vergonha, se em alguns poemas é registrada em tom menor, em outros avulta em volume máximo. É reflexo de uma consciência que não se deixa enganar e diante de injustiças e ofensas busca nas metáforas uma expressão para traduzir o desgosto diante da realidade onde humanos excluem outros alijando-os por completo da participação social à qual têm direito: “grita, tambor/ grita/estamos do lado de fora/com as mãos vazias/ e as portas estão fechadas/com chaves de desamor”.
O resgate do passado e a constatação de que ele permanece no presente despertam a revolta do poeta, que reitera a necessidade de continuar falando, gritando, protestando, apesar das pressões em contrário, das ações voluntariosas no dissuadir, calar, ignorar, menosprezar os que clamam. Em muitos versos distribuídos pelos poemas de forma intencionalmente repetitiva, desvela-se a resiliência, capacidade de resistir às adversidades e superá-las sem perder a integridade. Essa força é natural sinônimo de empenho: “Só vou parar de lutar/ Contra tanta injustiça/ Quando o sol brilhar”. E também de coragem desmedida: “Tocai, tambores, tocai/ Não tenho mais medo da morte/ Sei que não vou desaparecer/ Tocai, tambores, tocai”.
Por fim, a esperança, tônico insubstituível para quem se define “apenas um homem/ Lutando em seu quilombo de palavras/Apenas um homem/Tentando interpretar anseios e esperanças/ De todo um povo desprezado e explorado/ que um dia há de se levantar”. A fé num futuro que poderá construir uma sociedade de iguais depende também da união de consciências e propósitos no presente. Para isso serve a poesia em sua face pedagógica: ensinar a lutar de forma efetiva por liberdade, autonomia, igualdade de direitos e oportunidades. “Olorum não gosta/ de quem não tira o traseiro do sofá.”
Esperança, resiliência, indignação e memória movem os poemas porque mobilizam a alma do Autor, plenamente vitalizado a caminho do seu centenário. Prova de sua lucidez e criatividade são personagens relativamente recentes como o conservador negacionista Brasilino, perfilado com ironia: “Brasilino você é incrível/Brasilino você não existe/Deixe de conversa fiada/Essa conversa de que aqui tá tudo em paz/ Essa conversa de que aqui não tem racismo/Essa conversa de que aqui todo mundo é igual”. Em contraponto, surge Zé Tambor, continuamente perseguido pela polícia por conta de sua cor: “Ei, Zé Tambor aí parado/na frente do cinema/ Na frente do banco/na frente do supermercado/Zé Tambor cuidado”. Passarinho e Berimbau são vozes que anunciam um mundo menos corrupto: “Quando Zumbi voltar/ Com a lança na mão/Vai botar pra correr/ Esse povo engravatado/ Desonesto e mau/ Que abusando do poder/ Na maior cara de pau/Arromba o cofre da nação”. Do noticiário irrompe o factual: “Em nome da segurança/Em nome não sei de que/Alguns policiais ferozes/Com sete tiros nas costas/ Mataram um jovem negro/Na Vila são Sebastião/ Tá lá clamando justiça/ Mancha de sangue no chão”. Dos telejornais do país, um assassinato que ganhou o mundo: “Quem mandou matar Marielle/ A nossa nova Dandara/Quem mandou matar Marielle/ A enviada de Ogum?” Ogum, Dandara, Olorum e muitos Orixás, figuras fundamentais na poesia de Assumpção, são elos preciosos que religam à África os nativos dela sequestrados e aqui escravizados.
Sobre o estilo, inquestionável é o caráter eufônico dos versos compondo poemas que alcançam pungente dramaticidade quando declamados, à maneira dos de Castro Alves, a quem o autor homenageia em “Prece”. Na análise do léxico, a escolha de palavras-chaves como tambor, chicote, batuque e outras de uma família semântica que elege o não-silêncio, está atrelada às emoções do poeta: “Tambor que fala de ódio e amor/ Tambor que bate sons curtos e longos”. Versos rápidos, sonoros, cadenciados, às vezes quebrados lembram fragmentação e remetem à história de ruptura que subjaz aos poemas: “Vim da África/Fui trazido para cá à força/ pra trabalhar”. Metáforas de grande impacto e beleza plástica impressionam leitor e ouvinte: “Neste mundo branco/ somos considerados/incômodas manchas negras”. E a ironia, figura de retórica, presente na maioria das quadrinhas, assume tons cáusticos em “Inocência”: “A menininha disse zangada/ Que sua coleguinha ao lado/ “Me xingara de negro” /E acrescentou/Deus vai castigar ela, professor/ Ela ainda vai casar com um negro”. Rindo se açoitam preconceitos- já tinham por dístico dramaturgos latinos.
Leclerc, conde de Buffon, amigo de Voltaire, em discurso na Academia Francesa de Letras cunhou frase até hoje inquestionável sobre o estilo de um artista. Disse ele: “O estilo é o homem”. Com isso desejou expressar sua convicção de que estilo é tradução do caráter, é marca característica e inconfundível que ninguém consegue imitar. Os poemas de Carlos de Assumpção trazem seu DNA, expressão máxima como indivíduo e escritor. E se ele recolhe da realidade elementos para sua escrita, não faz autobiografia, mesmo considerando seu legítimo lugar de fala. Como todo poeta lírico, toma sua experiência individual como matéria-prima, mas como todo artista maior, cria obra cujo interesse vai muito além do pessoal. Ele se integra ao coletivo e se torna sua voz. Isso é grande e belo.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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