PSICANÁLISE

Momentos memoráveis do Poepsi

Por Sonia Machiavelli | especial para o Portal GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 6 min

Vivi no último sábado uma manhã inteira de construção de memórias boas a partir de acolhimentos, falas, escutas, olhares e afetos inspiradores de que esteve repleto o encontro do Poepsi - Polo de Estudos Psicanalíticos de Franca, grupo criado por Ana Márcia Rodrigues, Ana Regina Caldeira, Débora Agel Mellem, Fátima Cassis, Josiane Barbosa e Sonia Godoy, todas pertencentes à Sociedade Brasileira de Psicanálise/RP. Há quinze anos elas vêm tornando públicos em Franca, a partir de viés psicanalítico, pontos de vista sobre enredos e personagens criados por cineastas e escritores de reconhecido valor.

Por uma década, títulos escolhidos com critérios de excelência que privilegiaram forma e fundo, foram apreciados no "Cinema e Psicanálise", que atraiu à sede campestre do Centro Médico centenas de profissionais da área psi mas também da saúde e educação, das artes, e universitários interessados nos desvelamentos das complexidades psíquicas do ser humano. Dificuldades inerentes a licenças para exibição dos filmes inviabilizaram o evento no formato oferecido até imediatamente antes da Covid. Transcorridos dois anos em que o mundo parou, o grupo, que se manteve ativo on line no período difícil, voltou à atuação presencial, seguindo o mesmo propósito mas optando exclusivamente pelos livros. O "Literatura e Psicanálise" contempla todos os gêneros literários.

Os encontros têm acontecido desde então no auditório anexo ao consultório de Josiane Barbosa, espaço bonito, iluminado e, o que é um plus, enfeitado por vasos de orquídeas sempre floridas.  Foi nesse lugar, preparado com bom gosto e carinho pela empresária Carolina Rodrigues, do Labor Coffee, que fomos recebidos, mais uma vez, no último dia 4,  para mais um evento.

Ali estava Josiane abrindo a "master class" com seu inconfundível calor humano aliado a peculiar bom humor. Nas mãos, pasta idêntica à que tinha sido oferecida ao público, na entrada, como material de apoio: folhas em branco para tomada de notas e um cartão de identificação. Observei a minha, considerei zelo e cuidado, os olhos foram atraídos para o símbolo impresso, o selo ampliado do Poepsi. Nele, como um ex-libris, a imagem de Gradiva, sobre a qual o grupo havia falado tempos atrás. Remexendo nas gavetas da memória encontrei uma lembrança. Gradiva era o nome da personagem de um romance do alemão Wilhem Jensen, publicado em 1902. O enredo mostrava arqueólogo que se apaixonava por gravura do século II, recortada em mármore branco, exibindo moça que caminhava com vestes esvoaçantes. O jovem almejava encontrar em carne e osso esse ideal de feminilidade, desejo que o levou a um sonho desdobrável. Sigmund Freud, o criador da Psicanálise, leu o livro e o analisou, publicando pela primeira vez, em 1907, um surpreendente e inovador estudo a respeito. Nessa análise registrou, entre diversas observações impactantes, que "qualquer pessoa, mesmo dotada da mais viva inteligência, poderá reagir de forma insana e acreditar em acontecimentos absurdos para satisfazer seus impulsos emocionais." Conforme eu veria logo depois, o espírito dessa frase permearia sob alguns aspectos as falas das psicanalistas Débora Mellem e Ana Regina e da professora de literatura Maria José Bottino Roma.

Coube a Débora Mellem mostrar as entranhas de uma ficção de autor de língua inglesa, Julien Green, pouco conhecido em nosso país mas já associado por alguns críticos a Clarice Lispector. "Se eu fosse você", o romance, ergue-se sobre relato que poderia ser sintetizado como a saga do jovem Fabien, que, insatisfeito com sua aparência e personalidade, firma pacto com o Diabo e passa a habitar, um após outro, os corpos e as vidas de quatro homens em quem busca seus ideais de forma física e psíquica. A procura se torna infrutífera, sempre haverá no outro algo que desagrada ou desgasta o protagonista que tem um final trágico. Aproximando a narrativa de ideias de Melanie Klein e de alguns conceitos de Bion, Débora manteve o auditório preso a suas palavras que esmiuçaram o comportamento de Fabien e mostraram que "nossa realidade psíquica pode estar dividida e até desintegrada, caótica, havendo vários eus, ou seja, sensações e vivências emocionais que não se integram nem têm coerência entre si (...) Nossas fantasias podem nos levar a viver em universos surreais."

Em seguida, Ana Regina conduziu os presentes ao reino da poesia e os convidou para, junto a ela, darem as mãos a Fernando Pessoa ele-mesmo e aos seus três mais conhecidos heterônimos. Através de criteriosa seleção de poemas ela mostrou com precisão e sensibilidade a singularíssima pluralidade de "eus" em versos de Alberto Caeiro, Álvaro Campos e Ricardo Reis. Em instante emotivo, Ana Regina, recém-chegada de Lisboa, contou como foi afetada ao visitar a casa do grande poeta de todos os tempos, hoje transformada em museu. Ali, descreveu, viu-se no interior de sala repleta de espelhos que ao mesmo tempo em que devolviam aos seus olhos sua imagem fragmentada, lhe permitiam ver-se por inteiro de acordo com o ângulo onde se posicionava. Ana Regina não poderia ter evocado imagem mais icônica, bela e comovente para expressar a originalidade e a sofisticação de uma poesia que não encontrou até hoje paralelo nem em português nem em outros idiomas.

Na sequência, Maria José, que tem sido parceira constante das psicanalistas do Poepsi, comentou, com a segurança  de quem desenvolve intimidade com a obra literária, e com a emoção que coloca na exegese dos autores de sua eleição, um dos romances que figura na lista das obras-primas da nossa literatura- "Angústia", de Graciliano Ramos, que o publicou em 1936, dias antes de ser preso pela ditadura Vargas. O livro, considerado um ícone na acepção de Italo Calvino, a de que como tal são considerados os textos que sempre serão lidos com interesse porque nunca perdem atualidade, recebeu de Maria José um olhar perquiridor. Ela deslindou um Luís da Silva revestido com as cores sombrias que a crônica literária já sedimentou, mas o perfilou também pelo sentimento explícito no título, detalhado-o nas manifestações delirantes.

As três análises se mostraram interligadas pelo ponto de intersecção da pluralidade dos eus pois Fabien, Pessoa e Luís da Silva, descortinados pelas analistas e pela escritora, mostraram aspectos multifacetados de suas interioridades. Por conta dessa percepção, as questões colocadas antes do encerramento por Sônia, Ana Márcia, Fátima, Josiane, Ulisses Lampazzi  e outros reforçaram a que ponto máximo as falas estiveram conectadas.

Não terá sido fácil preparar um evento como esse. É nítido que as análises demandaram conhecimento, tempo, energia, pesquisa, amor à psicanálise, à literatura, ao humano. Os aplausos no final traduziram o reconhecimento do público à riqueza das apresentações.

Momentos memoráveis ficam retidos na lembrança por terem tocado as fímbrias das emoções que vitalizam. Deles poderíamos dizer que desejaríamos que se repetissem indefinidamente, em eterno retorno. De alguma forma explicam escolhas e parecem nos dizer: "isso é belo, verdadeiro, perene." Então, de minha parte, quero externar por escrito a gratidão por me ter sido permitido compartilhar a luminosa manhã do primeiro sábado de outubro. Reunida a tantas outras dos últimos quinze anos ela se tornou mais uma das pedras de toque que, oferecidas pelo Poepsi, vêm formando um colar de imunidade contra a desesperança nesse nosso tempo de IA onde a subjetividade parece ameaçada.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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