LITERATURA

Carrascoza em Franca

Por Sonia Machiavelli | especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 5 min
Marcos Vilas Boas/Divulgação
O escritor João Anzanello Carrascoza
O escritor João Anzanello Carrascoza

‘Cândido’ é um jornal literário que surgiu em 2011 em Curitiba, editado pela Biblioteca Pública do Paraná. Único no gênero, sua linha editorial é voltada para a difusão do livro, leitura e literatura. A edição digital de junho deste ano traz a íntegra da apresentação do escritor João Anzanello Carrascoza naquela cidade, no quarto encontro da temporada do Projeto ‘Um Escritor na Biblioteca’, com mediação do jornalista Yuri Al’Hanati.

Em estilo despretensioso, leve e cativante, o autor de contos e romances, também de obras infantis e juvenis, fala sobre a infância entre livros, a cidade natal, a vida no interior até a adolescência, o despertar do gosto por ouvir histórias e depois contá-las, a trajetória profissional que inclui formação em Publicidade e Propaganda, na USP.

Nascido em Cravinhos no ano de 1962, oriundo de família ligada aos livros - a mãe professora ‘sempre com livro na mão’, o pai comerciante ‘com muitas histórias para contar’, herdou de uma o gosto pela leitura e do outro o prazer da narrativa. Essas duas influências contribuíram para que logo o filho se tornasse um rato de biblioteca, hábito que manteve por décadas: “Até meus 30 anos, praticamente comprei poucos livros. Fui um leitor de biblioteca, por isso sou muito grato.”

Devorou a pequena biblioteca da família, a de sua cidade natal e a de Ribeirão Preto, até chegar à Universidade de São Paulo, cidade que viu nascer seus primeiros contos e onde estreou na literatura infantojuvenil em 1991 com ‘As Flores do Lado de Baixo’, conquistou prêmios literários e aprendeu a vender histórias como publicitário. “A diferença da ficção para a publicidade é que só a ficção é visceral, é tua”, revelou ao público nas páginas de ‘Cândido’.

Como se pode ver, as bibliotecas estão muito presentes na vida deste escritor. Foi buscando livros e lendo-os com ‘deslumbramento’, expressão de Manuel Bandeira que ele toma emprestada para traduzir seu estado de espírito à época, que descobriu na prosa e na poesia autores que ainda não tinha lido e lhe foram muito importantes. Como o Carlos Drummond de Andrade de ‘As Impurezas do Branco’, onde o poema ‘Ao Deus da Comunicação’ teve valor de epifania ao lhe desvelar o problema das incomunicabilidades humanas. Como Raduan Nassar, cujo romance ‘Um Copo de Cólera’, ao mesclar o lírico e o épico, também constituiu momento de iluminação interior, apontando um caminho de  escrita, reforçando o que já intuía, ou seja, não bastava o enredo, era essencial que também a linguagem conseguisse dizer, iluminar, embelezar. “Aprendi isso com o Raduan, que dizia: ‘Você vai usar uma metáfora para dizer algo mais rápido e mais bonito? Senão não precisa da metáfora’. Aí você acaba saindo do documental, do puro registro óbvio, para buscar uma palavra, um jeito, uma analogia, uma comparação.”

Ainda a respeito de inspirações para a escrita, pergunta que sempre surge nos encontros do escritor com seu público, voltou a dizer no evento do Paraná:

"Não consigo escrever nada sem estar tocado. É preciso estar afetado pelo mundo ou por alguma situação, sentimento, som, aroma, alguma visão. Às vezes, alguma frase. Você tem que estar tomado, possuído. No romance isso tem que estar potente o tempo todo. No Caderno de um Ausente, por exemplo, um pai dá as boas-vindas para uma filha que vem ao mundo. É algo de muita responsabilidade, porque você está dando a morte também. É toda uma experiência de contentamento, desencanto, alegria, descobertas. É o encontro profundo com a condição humana. Se eu não estiver tocado, prefiro nem escrever. Agora, é claro que depois disso há todo um processo de atuação com a razão. A literatura é a reconstrução racional de uma emoção. É preciso ter uma escolha lexical, musicalidade, o nome dos personagens — tudo isso passa pela razão, pelo intelecto. Mas, sem o impulso de uma paixão, que pode vir da intranquilidade, da falta de calmaria, da dor, de peso e sofrimento, não dá para ir adiante."

João Anzanello Carrascoza tem muitos leitores também em Franca, todos seduzidos por títulos como ‘Elegia do irmão’; ‘Inventário do Azul’, ‘Entre Bichos e Plantas’; ‘Menina escrevendo com o pai’; ‘A Pele da Terra’; ‘Conto para uma só voz’; ‘Aquela Água Toda; Amores Mínimos; Espinhos e Alfinetes; O Volume do Silêncio; Hotel Solidão e mais pelo menos outros vinte. Leitoras e leitores, de diferentes faixas etárias, são esperados para um bate-papo com o autor numa biblioteca, como já se percebeu espaço de grande significado para o escritor. No caso é a Biblioteca Municipal de Franca, patrimônio da cidade, a sediar o evento que resulta de parceria entre o SISEB (Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Estado de São Paulo) e a Prefeitura Municipal. Vai acontecer no próximo dia 19, sexta-feira, às 17h30. A mediadora será a escritora francana Vanessa Maranha, romancista e contista, que tem com o escritor convidado pontos em comum como a excelência da escrita, a contemporaneidade dos temas, a  atuação nos meios culturais, o prazer de divulgar a literatura que se faz hoje no Brasil  e a conquista de prêmios importantes, cuja lista se iniciou para ambos com o Radio France Internacional.

Para o banquete que há de ser esse encontro, fica aqui um aperitivo extraído do conto ‘Paçoca’, incluído no livro ‘Catálogo de Perdas”:

"Meu pai era pedreiro. Sabia distinguir a cal e a areia de qualidade, erguer muros e paredes no prumo, rejuntar com esmero pisos e azulejos. Mas não sabia escolher palavras- comentou um dia minha mãe. Ele dizia sim quando deveria dizer não. Expressava-se de forma ríspida, quando devia ser doce, e vice-versa. Talvez por isso meu pai vivia calado, só falava o essencial. Deixava-me subir em seus ombros, brincava comigo no chão da sala, acariciava meus cabelos com suas mãos rudes, embora nunca tenha dirigido a mim, menina, uma palavra de ternura. Mas, sempre que passava na padaria, trazia-me uma paçoca. No centro do rótulo, um desenho, e abaixo, uma palavra. Eu reconhecia no desenho um coração. Mas, sem saber ler, ignorava o significado da palavra. Nunca me ocorreu perguntar a ele. Nem tive tempo- meu pai caiu do andaime de um edifício em construção. Tempos depois, entrei na escola, aprendi a ler, escrever, escolher palavras. Fui com minha mãe à padaria e vi a paçoca da marca que ele me trazia: no centro do rótulo, o desenho de um coração. E dentro dele a palavra que, até então, eu desconhecia: amor."

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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