CRÔNICA

Choro no ar

Por Sonia Machiavelli | especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 4 min

Eu já havia me sentado atrás deles, entre minha irmã Sandra e a sobrinha Talita, e até afivelado o cinto, quando chegaram. Eram bonitos. Estavam bem trajados, com roupas de grife que se revelavam no caimento do bom corte e na discrição das cores. Ele usava camiseta verde-oliva; ela, camisa de finas listras azuis; o menino, t-shirt cinza-claro combinando com a calça. Os jeans pareciam uniformizá-los. As maletas, que vi o casal alçar ao bagageiro para serem acomodadas, exibiam a logomarca dourada que era a de um dos produtos mais caros no mercado travel. De valor alto eram também os Rolex que levavam no pulso. Estariam vindo de algum lugar onde se jogava tênis, pois percebi que depois de terem se sentado, a moça se levantou para verificar se o cabo da raquete estaria bem encaixado. Família fina, pensei. Sandra falou baixinho: ‘família chique’. Com olhar de admiração, Talita concordou, ‘lindos’. Pareciam saídos de anúncio, tipo família em férias. Faltavam contudo sorrisos. Eram belos e sérios, meio tensos. Os três.

Estávamos cansadas de um périplo de horas de voos em conexão. Assim que o avião decolou, caímos no sono. Não sei por quanto tempo, só me lembro de que acordamos com o choro do menino à nossa frente. Não era alto, ao contrário, mas ouvi-lo nos deixava agoniadas. Pensei na idade dele. Quantos anos teria? Cinco, talvez. Era do tamanho do neto de Sandra, que também estava no avião, na companhia dos pais, próximo de nós. Nando deveria estar dormindo tranquilamente naquele momento, caso contrário o teríamos ouvido, pois alegre e falante já teria dito algumas vezes: “Oi, vovó! Oi, madrinha! Tudo bem com vocês”? Todas as crianças felizes se parecem; cada criança infeliz é infeliz à sua maneira.

O menino à nossa frente continuava chorando baixinho. A mulher estava ficando muito irritada. O homem ainda mais. Moviam-se nas poltronas, acusando o desconforto da situação. Por duas vezes se levantaram para ir ao toalete e nessas ocasiões eu pude entrever, apesar do exíguo espaço entre os assentos, o rostinho em lágrimas do menino. Estaria doente? Alguma dor o afligia?  Ou seria apenas a sensação de aprisionamento que sentem alguns pequenos em ambiente enclausurado? Era noite e uma inesperada instabilidade levara o comandante a pedir aos passageiros que se mantivessem em seus lugares com os cintos afivelados. Seria possível que o menininho intuísse alguma apreensão nos adultos? De vez em quando o ouvíamos dizer pedaço de frase inaudível e a mulher respondia, colocando o indicador sobre os lábios: “quieto!”.

O homem começou a se manifestar verbalmente, demonstrando a irritação que o tomava: ‘para com esse choro! engole esse choro!’ Em certo momento perguntou áspero: ‘Afinal, o que você quer?’ E o pequeno respondeu: “Quero ir pra casa”. Soou estranho o que veio como resposta: “Para qual casa?” Havia uma ironia naquela voz que era ruim de escutar. Depois de repetir que queria ir para casa, a criança se calou. Acredito que tenha se distraído com folha em branco e lápis de cor que a comissária lhe entregou num primeiro momento ou com o pacotinho de biscoito achocolatado que lhe foi oferecido depois. Deve ter dormido, porque por uma hora foi só silêncio.

A maioria dos passageiros cochilava quando foi avisada de que logo seria iniciada a decida. Estávamos a cerca de 70 km de nosso destino. Foi quando voltei a ouvir o choro do menino que por certo acordara assustado. Minha irmã despertou também. A sobrinha tinha chegado ao fim do filme que escolhera assistir. Estávamos portanto bem alertas quando um estalo nos assustou. Me concentrei no choro infantil sufocado. Talita se levantou na hora e, descumprindo a ordem para permanecer em seu lugar, dirigiu-se ao comissário que fileiras além inspecionava a posição das poltronas e o uso correto do cinto para a aterrissagem iminente. Ela contou ao funcionário que na poltrona à frente da nossa, uma criança havia chorado grande parte do tempo; e o pai acabara de lhe dar um tapa no rosto. Do lugar onde se encontrava, ela tinha visto a mãe tapar a boca do menino, para que seu choro não fosse ouvido. O comissário respondeu que havia percebido os abusos, a polícia do aeroporto já fora avisada. Nada mais acrescentou, porque se dirigiu rápido ao seu lugar de tripulante preparando-se para o pouso.

Não ficamos sabemos qual foi o fim desta história. Mas uma pergunta se plantou em nosso espírito e é provável que nunca seja respondida: por qual razão tínhamos presumido que os três formavam uma família, se em nenhum momento ouvimos o menino se dirigir ao homem chamando-o de pai ou à mulher chamando-a de mãe, muito menos o casal falando em algum momento: filho!

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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