NOSSAS LETRAS

Conversa na praia

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 5 min

A bola fez bam! E de novo bam! Era vermelha e grande. Bateu duas vezes na areia molhada. Tinha sido bem impulsionada. Lembrei-me de campanha de trânsito dos anos 70: “Atrás de uma bola sempre vem uma criança”.

Mas ali criança não correria perigo. Era uma praia particular, se é possível considerar que pessoas possam ser proprietárias de um pedaço da natureza. Deveria pertencer a todos; não era afinal aquele lugar “patrimônio da humanidade?” A humanidade, dividida demais.

Minha neta estava agachada a cinquenta metros de mim.  Andava na fase de coletar conchas. Eu procurava me proteger debaixo de uma barraca, pois a partir das dez, naquele ponto extremo do país, o sol começava a castigar.

A bola que tinha sido apanhada por mão adulta ficou fora de minha visão por poucos minutos. De novo fez bam e bam. Desta vez, quem veio colhê-la foi uma menina que deveria ter uns sete anos. Seus cabelos loiros, lisos e compridos eram protegidos do Sol por boné que tinha as iniciais da cidade de Nova York.  Atrás dela a babá uniformizada de branco, cabelos presos, tênis marinho. ‘Logo chegarão os pais’, pensei. Mas se passaram minutos e nada. Pela conversa de ambas, percebi que estavam sozinhas.

- ‘Olhe, só podemos ficar até às onze, ordem de seu pai’, avisou a mulher.

A menina falou um ‘tá bom’ e correu na direção da minha neta, na expectativa de companhia para brincar. A praia estava um tanto deserta. Virei-me para a babá. Deveria ter pouco mais de trinta anos. Sua pele era cor de jambo, tinha maçãs do rosto salientes, trazia os cabelos lisos e escuros presos num coque frouxo. Respondeu ao meu olhar e trocamos um sorriso. Em seguida sentou-se sob um guarda-sol ao lado. As meninas voltaram, pedindo para entrar na água. Respondemos que não, só poderiam brincar por ali, perto de nós.

Então eu disse à babá que aproximasse sua cadeira da minha, e se sentasse mais perto para concentrarmos a atenção sobre as meninas e dividirmos uma jarra de suco de caju que eu havia pedido e acabava de chegar.

Chamava-se Neusa e tinha nascido e crescido na zona rural de Natal. Elogiei o suco e ela comentou que o caju era sua fruta predileta, desde criança. Percebi que se expressava bem. Continuamos a conversa.

- Trabalha há muito tempo como babá?

Falou que sim, desde mocinha, sempre. E riu. Tinha dentes bonitos. Depois, como se orgulhosa, continuou: “fico sempre nas casas até o bebê crescer e ir para a escolinha. Com Dona Janete estou durando mais. A Ana já vai para o primeiro ano mas a patroa quer que eu continue. Diz que vai encomendar outro bebê e precisará de mim. Vou ficando.”

- E você gosta do seu trabalho?

- Gosto. Mas há um problema.

- Qual?

- Também tenho filho pequeno. Seis anos. Sinto saudades dele.

- Como assim?

- Pois é. Descuidei e engravidei. Já tinha filha crescida quando aconteceu. Hoje ela tem quinze anos.

- Se você sente saudade é porque fica algum tempo sem ver seu filho...

- Um mês. Só tenho folga a cada quatro semanas. Moro na periferia.  Tenho de tomar quatro conduções para chegar no meu barraco.

- Barraco?

É um barraco de madeira, no meio de muitos. Quando o pai da minha filha conseguiu comprar, quase ninguém morava lá. Hoje ali vive um tanto de gente! Ficou ruim. Tudo o que a vizinha faz e fala a gente escuta. E o cheiro de esgoto, então? Me incomoda demais!

- O pai de sua filha não é o pai de seu filho?

- É não. Com o pai da Luana fiquei três anos. Ele trabalhava num bar perto do centro histórico. Um dia me disse que no Nordeste não teria futuro.  Que ia para São Paulo, tentar alguma coisa melhor para nós e depois vinha buscar a gente. Nunca mais vi.

- E o pai do menino?

- Tenho dedo podre pra homem. Esse não vale nada. Quando descobri que era traficante, mandei embora.

- Você tem de dar conta sozinha dos dois filhos?

- Pois é. Por isso é que não posso sair da Dona Janete. Sinto saudade do meu menino, mas procuro me acalmar. Ainda mais agora.

- O que aconteceu agora?

- Minha filha pegou barriga. Tá de quatro meses. Ela é quem toma conta do barraco e do irmão. Fez só dois anos do primário e parou. Precisou parar para me ajudar.

- E ela vai se casar e te deixar?

- Não... Porque tem um problema. Ela não sabe quem é o pai. Diz que acha que é um tal Dieguinho. Acha... Foi num baile não sei onde, transou, depois de semanas apareceu enjoando... Descobri logo. Fiquei muito brava, tive gana de bater nela. Mas recuei no ódio. Eu tinha feito coisa igual. Minha mãe quase morreu de desgosto. Aqui se faz, aqui se paga.

- E agora?

- Agora é continuar trabalhando. Tenho de dar de comer a dois filhos e um neto, ou neta. Dona Janete diz que vai me comprar um bercinho. Mas nem sei onde colocar, porque o barraco já está apertado demais. Talvez um carrinho seja mais fácil de acomodar. Dona Janete vai viajar para a Europa, fazer segunda lua de mel, ela me disse.  Quando voltar, vou falar pra ela trocar o berço pelo carrinho. Bebê fica bem até quatro meses num carrinho. Se for um carrinho bom, até seis.

- E depois? Arrisquei.

- Depois eu não sei. Desaprendi de pensar no depois. Eu vou vivendo do jeito que Deus manda.

Olhou o relógio barato que levava no pulso e chamou a menina que continuava brincando:

- Quase onze. Vamos!

Quando ela se aproximou, disse:

- Despede de sua amiga e da avó dela. E virando-se para mim, que também já me levantava para a retirada:

- Prazer. Meu nome é Juvenília. Ó, melhor vocês se apressarem. E apontando para cima: “Sinal de chuva essas nuvens baixas. Chuva de verão. Cai e logo passa, o Sol volta de novo. Sempre assim.”

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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