NOSSAS LETRAS

O queijo e o verme e outros formigueiros

Por Baltazar Gonçalves | Especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 6 min

Retornei à papelaria, outro dia dei de topa com dona Eulália. Impressionante como algumas personalidades não envelhece, ela continua com 70 anos e tão lúcida quanto à época. Ela me contou meio desconversando seu constrangimento num momento de estresse em que resolveu fumar um cigarro só para lembrar o mal que deixou há mais 30 anos. Três baforadas e não soube o que fazer com a bituca.

O desconforto de não saber lugar para o lixo incomodou, ela escondeu a brasa dentro do buraco de um formigueiro e arrependeu logo que viu o incêndio alastrar chamas altas nos corredores infindáveis. Operárias frenéticas aterrorizadas derretendo em fusão de corpos sem saída, presas inutilizadas mortas carbonizadas. Uma comunidade inteira de filhos e filhas, órfãos e viúvas, soldados e milhares à paisana ardendo aos gritos. Olhos e ossos derretidos pelo calor imensurável de uma bomba-H. Uma dinastia perdida, a soberania de uma nação em risco. Rainha e presidente, milhares de vidas de um formigueiro sem filosofia, história ou poesia. Dona Eulália genocida, que cena absurda.

Rimos porque achei graça nos trejeitos dela enquanto falava e lembrei de comentar: “estou relendo Kafka”. Ela disparou como se tivesse decorado de um post do Zerobill no instagran: a metamorfose de Gregor Samsa em inseto é sobre alguém que faz tudo pela família e depois perde a função, fica isolado até desparecer da história, no fim denuncia a norma da nossa vida banal. Concordei, se no prólogo a transformação parece absurdo, inverossímil impossível, nas últimas páginas encontramos a satisfação de saber que, por mais hediondo violento absurdo e repugnante que a realidade possa se apresentar, podemos ligar o botão “foda-se” e negar o desastroso, afinal toda gente encontrar conforto no autoengano mesmo que temporário e a um custo psíquico alto.

Me gabei para dona Eulália por eu ter publicado mais cinco livro depois do tecido na papelaria, ao que ela respondeu também en passant: “me matriculei num curso de filosofia”. Então discorremos sobre autores e leituras que amamos, fomos de Kafka a Allan Poe como quem combina morangos mofados e chocolate branco: o mergulho psicológico profundo da literatura de Poe muitos antes de Freud com o absurdo realista inacreditável de Kafka.

Conversa saborosa sobre inutilidades fundamentais: Filosofia, História e Poesia que são facilmente descartadas no decorrer dos dias. Ela tinha pressa e me deixou na papelaria, antes a velha conhecida pediu-me o whatssap. Demos um abraço demorado e dobramos a esquina cada um por uma linha. Com a mente rebobinando ideias, meia hora eu ainda refletia sobre como atribuímos valor econômico a tudo, quanto mais pudermos desejar e possuir, quando recebi essa mensagem de dona Eulália no zap, provavelmente produzida por IA porque Eu-lá-lia é moderninha, ou contrário de mim que penso e peso cada palavra que escrevo.
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Caro Baltazar (não consigo te chamar de Bill), que valor econômico pode ter “pensar” se não custa nada a quem pensa e não é possível vender pensamento? Também a poesia, mesmo sendo de natureza provocante não serve a nada, pior quanto mais o uso dela é empobrecido ao decorar coisas feias, palavras rebuscadas adornando vazio eloquente, como no caso daquele poema viral sobre crianças deformadas pela fome morrendo nas sombras de escombros em Gaza.

Não servindo a nada, e sem valor econômico, desfiar ideias sempre gera pensamento novo, desconcerta ordens e é perigoso já que “manter a ordem leva ao progresso”. Quantos anos de prática serão necessários para limitar o cérebro de um criança? Décadas de pleno exercício e séculos de demonizando do conhecimento, seria o fim de um mundo se o vírus pensamento-livre contaminasse mentes subordinadas. Houve um caso notório de contaminação espontânea por pensamento-livre na idade média europeia, um moleiro fazedor de tijolos sem instrução viu-se perseguido por padres e bispos e papa, todos líderes espirituais sanguinários, gente grande e poderosa preocupada com a fala de um anônimo numa vila esquecida por Deus. O historiador Carlo Ginzburg resgatou esse caso dos anais do tribunal da inquisição e tratou o documento com análise crítica no livro de 1976: O QUEIJO E OS VERMES.

Afinal, porque um simples aldeão tornou-se perigoso para a imensa e santa e madre igreja católica e apostólica e romana? Não se engane caro leitor, qualquer alma pode ser o diabo disfarçado. É responsabilidade dos santos dos últimos dias de qualquer tempo purificar o corpo do pecador, mesmo que para isso tenhamos que crucificar, queimar, estrangular, sufocar, destroçar e desmembrar, não necessariamente nessa ordem. A tática “causar terror e medo para manter controle e expandir territórios” ainda é usual e funciona bem nos formigueiros humanos derretendo em transmissões ao vivo em Gaza, por exemplo, e todo mundo vê. O moleiro Domenico Scandella, ou Menocchio como era conhecido por seus iguais, foi julgado e inquirido, torturado e condenado por heresia contra deus.  Em nome de deus, foi assassinado. Sabe-se que passou por uma dessas torturas:

No “potro” o réu deitado em cama de ripas tem pés e mãos amarrados por cordas em haste de metal ou madeira que o alongam até que chegue a dormência sanguínea, depois da limitação total dos movimentos e a ausência da circulação o corpo pode necrosar. Para obter pressão potente sobre o corpo da vítima, as cordas devem ser apertadas por roldana facilitando o trabalho do torturador. Embora o objetivo não seja decepar, o “potro” pode cumprir essa função devendo quem o queira usar cordas finas de diferentes espessuras.

A “roda” deve ser temida já que a vítima terá seu corpo preso nela e posicionado em baixo de um braseiro, o calor e as queimaduras pode ser dosado na medida em que a roda é deslocada na direção do fogo, ou dos ferros pontiagudos que laceram o acusado. Os católicos apostólicos e romanos inquisidores que mais usaram esse método para extrair confissões foram os germânicos e os ingleses saxões. No “pêndulo” o acusado de blasfêmia e heresia contra a igreja católica apostólica e romana, e obviamente à Deus, terá seu corpo era suspenso até certa altura para ser solto e abruptamente segurado. O impacto destronca o desgraçado e pode aleijar o pecador, quiropraxia medieval.

Menocchio foi assassinado pelo tribunal da inquisição católica apostólica e romana por falar sobre a criação do mundo e da humanidade usando metáforas de fácil assimilação: o mundo é um queijo e nós (qualquer um, o papa ou você e eu) somos vermes que surgem da fermentação. O fazedor de tijolos desenvolveu suas próprias concepções lendo a Bíblia e outras obras proibidas. Ele acreditava que o mundo e a humanidade surgiram de forma natural e evolutiva, como Darwin confirmaria séculos depois.

Torturadores militares brasileiros dos anos de chumbo (1968 a 1974) usaram técnicas de suplicio contra políticas públicas, reforma agrária, distribuição de renda e conhecimento. O método medieval mais copiado pelo DOI-CODI foi A “tortura d’água”: a vítima amarrada de barriga para cima, sem poder esboçar mínima reação, recebe funil na sua boca e vários litros d’água são despejados goela abaixo. Entre intervalos, para descanso do algoz, um pano encharcado é introduzido na garganta para que a falta de ar do supliciado seja prolongada.

Esse texto foi integralmente produzido sem auxílio de Inteligência Artificial por Baltazar Gonçalves que é historiador formado pela Unesp e escritor membro da Academia Francana de Letras.

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