"Os mortos são invisíveis, mas não ausentes"
Vitor Hugo, escritor francês
Papai tinha idade para ser meu avô. Quando nasci, em meados dos anos 70, mamãe era uma jovem de 24 anos, mas meu pai já era um homem de 45. Naquele tempo, quando se casava mais cedo e os filhos também chegavam logo, a paternidade aos 50 anos era evento bem pouco comum.
Por conta da idade, e do perfil pouco atlético do meu pai, tudo somado a traços de personalidade, tive um pai que não era exatamente “companheiro” de brincadeiras e aventuras. Mesmo que fosse um esportista, acho que ainda assim ele dificilmente seria um ‘parceiro’. Mas isso nunca fez dele um pai ausente, ou distante. Era bravo às vezes, muito por conta da falta de noção típica minha e do meu irmão André na infância. Também era profundamente amoroso, do tipo que adorava beijos, abraços, e muitas declarações do tipo “Papai te ama”.
Imagino que seja curioso para quem conheceu apenas a figura pública do meu pai, sempre envolto na “persona” do jornalista, do político, do dirigente esportivo combativo e, muitas vezes, também duro, imaginar esta realidade. Mas era assim. Porque para além do Corrêa Neves, existia também o “Zezé”, nome pelo qual era chamado apenas pelos irmãos e irmãs, cunhada e sobrinhos. Na rua, era o “Corrêa”. Em casa, o “Zezé”, e por assim ia... Sempre achei engraçado demais.
Gostava de mesa farta, de reunir os irmãos, de ceias de Natal e Réveillon, de viajar. Amava bacalhau acompanhado de feijão e farinha (combinação herege para qualquer português, mas que fazia o mais absoluto sentido para ele), de frango caipira (com muito caldo, em quantidades que para saciar a ele e a meu irmão só recorrendo a um galinheiro particular), de pastéis de queijo e carne (com azeitonas, feitos por minha avó). Bebia vinho, uísque, cerveja.
Excêntrico, gostava muito de bolinhos de chuva... às duas da manhã. Vez ou outra ouvia do meu quarto mamãe caminhando rumo à cozinha, para atender à demanda do Zezé. Sim, bolinhos de chuva de madrugada. Não raro, pedia também leite com farinha e um pedaço de goiabada cascão, tudo servido frio num prato de sopa. Comia na cama, com os óculos um tanto tortos e o cordão que os segurava no pescoço meio caído sobre o peito...
Muitas vezes, ia para o quarto conversar com ele e minha mãe nestes momentos, já que eu e o sono travamos uma batalha ruidosa há décadas e sempre fiz das madrugadas uma indispensável aliada. Era sempre divertido, especialmente quando nos fazia companhia algum programa em árabe ou alemão dos canais de notícias e ele lutava para entender o contexto, irritado comigo por não ser fluente em persa nem na política interna da Zâmbia. Independente do seu grau de compreensão do que acontecia, ele tinha opinião – contra, ou a favor. Sempre. Era expert em mundo árabe, especialmente política.
No próximo dia 18, portanto dentro de oito dias, completam-se vinte anos da morte do meu pai. Já se vão duas décadas sem que eu ouça sua voz grave, sem que ele me chame atenção por alguma coisa, sem que o veja orientar matérias, sem que eu tenha a nos ajudar sua intuição forte e decisiva em momentos críticos.
Conheceu a neta, Julia, hoje com 26 anos, mas não teve a mesma sorte com João, que tem 15. Ainda assim, segue presente em muitas conversas, nas reuniões de família, e me emociona especialmente ver o João se referir ao “vô Corrêa” como alguém próximo, ainda que nunca tenham se conhecido.
Meu pai morreu; mas papai, nunca. Todas as noites converso com ele. Levo a ele minhas dúvidas, peço conforto nas adversidades, força para enfrentar os desafios, torço pelo aplauso nas vitórias. Quero saber o que ele acha do que cozinho, tento entender se gostou de um texto ou de um comentário no rádio. Busco sua energia para me ajudar a superar os obstáculos, sua garra para jamais esmorecer, sua picardia para não dar bola para os ataques de gente sem mínima noção da realidade.
Discuto com ele esse mundo louco, onde mentira virou “pós-verdade” e extremismo é o novo sinônimo de ignorância. Explico este mundo de rápida transformação, de novos jeitos de exercer o nosso ofício, de cumprir nossa missão mesmo sem o registro perene do papel.
Falo muito, papai quase nunca verbaliza nada de volta. Às vezes, muito raramente, aparece num sonho, invariavelmente em contextos indecifráveis, pequenos recortes de qualquer coisa. Ficou mais sarcástico agora que se aproxima dos 100 anos e prefere ouvir a falar, deixando para mim a tarefa de interpretar seu silêncio.
Então, converso com ele ainda que seja um monólogo, e busco nos 31 anos que passamos juntos as respostas para minhas súplicas. Tem funcionado, nesta nossa dinâmica tão singular. Eu falo, ele ouve mas não responde, resgato passagens da vida dele e normalmente tenho alguma indicação do que ele gostaria de dizer. Até nisso me ajuda, porque tenho ficado bom na arte de entender o “não dito”.
Pais, assim como as mães, nunca morrem de fato. Podem não estar mais aqui, podem se separar e construir novas relações conjugais, podem se mudar para lugares distantes ou verem seus filhos fazer o mesmo, podem envelhecer, podem ficar menos ativos, mas nunca deixam de ser pais. Porque esta não é uma relação contratual, nem de conveniência, muito menos regida por convenções ou limitada no tempo ou espaço físico.
O amor que une pais e filhos é transcendente. Não se explica, nem se anula. Não se esgota, nem se acaba. A morte tenta, mas sempre fracassa.
Vinte anos depois, continuo amando o meu pai do mesmo jeito. Como se fosse ouvi-lo daqui a pouco chamar minha mãe e pedir para ela fritar um pedaço de queijo meia cura e trazer junto um café quentinho, como era comum que fizesse nos fins de tarde de domingo. Me deu fome. E muita saudade. Mas tudo bem. Sei que mais tarde, quando for dormir, papai vai estar me esperando para conversar. Como sempre acontece, há vinte anos já.
Feliz Dia dos Pais! Aos filhos que puderem, abracem os seus pais, fisicamente ou numa ligação, melhor ainda se por vídeo (vai por mim, seu pai vai amar). Os que não terão esta chance, como eu, que resgatem as memórias. Sei que nossos pais estão por aqui. Sempre estarão.
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias. Este artigo é publicado simultaneamente em toda a rede Sampi, nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCNet), Campinas (Sampi Campinas), Franca (GCN), Jundiaí (JJ), Piracicaba (JP) e Vale do Paraíba (OVALE).
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Comentários
4 Comentários
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Darsio 21/08/2025É tão nojento constatar nos dias atuais o quanto que os tais influencers são cultuados como divindades, ignorando-se o fato de que muitos se quer possuem qualquer formação ou experiência de vida que possa ser traduzida em um exemplo a ser seguido. Muitos ignoram a voz de um pai para dar muito mais importância a estranhos. Digo que o meu maior influenciador sempre foi o meu pai, a escola com a qual adquiri os verdadeiros valores da vida. Parabéns pelo artigo. -
Paulo Spirlandeli 20/08/2025Tenho certeza que a maioria queria ter essa sua habilidade de escrever o que sentem. Podem não ter essa habilidade, mas certamente seus pais entendem suas prosas silenciosas e também, cada um à sua forma, os confortam. Eu, por minha parte, que ainda tenho o meu com seus quase 80 anos, não vou perder tempo e vou ter altos papos com meu Grande Amigo, o Meu Pai. Lindo texto. Parabéns! -
Douglas 11/08/2025Linda mensagem, que lembranças maravilhosas, um feliz dia dos pais. -
José Gaspar Xavier 10/08/2025Parabéns Júnior feliz dias dos pais? Parabéns exemplo de um bom jornalista