NOSSAS LETRAS

Muito além do jardim

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 5 min

“Todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído, é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardins por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles.”

Tenho certeza de que meu jardineiro, nunca tendo lido essas palavras de Rubem Alves, vivencia o tempo todo o que elas traduzem. Examina semente como se estivesse assistindo à sua transformação em árvore. Planta frágeis mudinhas sem se preocupar com o tempo que demandarão para se tornarem adultas. Expressa esperança de formar nos próximos anos um espaço de jardinagem onde suas netas possam um dia trabalhar e viver. Seu Hermínio sonha.

Homem de poucas palavras, um tipo que poderia povoar páginas de Guimarães Rosa, cuida do que fala para timbrar com valor o que diz. Mineiro dos confins das Gerais, olha tudo com desconfiança e atenção. Antes de expor sua opinião quando esta é solicitada, pensa uns segundos para responder. Foi assim na semana passada, quando depois da ausência de meses, por conta de uma queda que lhe rendeu fratura no braço direito, chegou para cuidar de meu jardim e me encontrou frustrada por uma razão específica.

Cuido há anos, com todo zelo, de um arbusto chamado cotonete, cujo nome deriva do formato de seus botões antes de se transformarem em flores grandes, cor-de-rosa, que lembram fogos de artifício e por isso lhe conferem um segundo nome. Espero onze meses para vê-lo florir no final do outono, exibindo seu maravilhoso espetáculo. Neste 2025 aguardei em vão desde que começaram as ondas de frio. Onde estariam os primeiros buquezinhos que sempre anunciam em prévias de duas semanas o show botânico? A neve-da-montanha, a poucos metros dele, já estava inteirinha branca e nem sinal da inflorescência rosa do arbusto que é nativo das Filipinas e cuja muda tinha sido formada para mim por pessoa querida.

Mostrei ao jardineiro a pequena árvore que ele já conhecia e lhe perguntei o que achava daquilo. Ele andou ao redor, observando-a do caule às pontas, riscou com estilete a terra onde se fincavam as raízes, quebrou um galho e vasculhou o interior da haste, colocou uma folha na palma da mão e a examinou atentamente. Só então falou, como um médico sobre sintomas exibidos pelo paciente: “ela está engrouvinhada; sinal de praga.” Eu, que não ouvia o adjetivo há décadas, resgatei-o na memória pela voz cristalina de minha mãe, também mineira, dos mesmos grotões onde tinha nascido o jardineiro.

Engrouvinhada. Feminino de engrouvinhado. Às vezes engruvinhado.  Deverbal antigo, esquecido, já com atestado de óbito talvez. Mas ainda capaz de acender uma lembrança afetiva e outra etimológica na mente de quem gosta das palavras e ‘no encontro de sua origem acha uma alegria’, como escreveu Jorge Luiz Borges. Engrouvinhado é a qualidade do que está amassado, enrugado, encolhido. Papel, pele, tecido. Folha. Gente. Pode se referir a objetos ou a sensações como as de frio e chuva, que causam encolhimento. Engrouvinhado, com gênese em grou, ave cujas asas possuem penas longas e curvadas para baixo.

Olhei atentamente a folha e percebi como as bordas, lindas quando saudáveis, roxas de um lado e verdes de outro, agora se retraiam ressecadas, num único tom de terra, enrolando-se para dentro. Me bateu tristeza aquilo, até porque me sentia também engrouvinhada naquela sexta-feira gelada em Franca. Mal tinha aberto a boca para obter mais detalhes e perguntar se não havia salvação, e minha atenção foi desviada para um pontinho branco e quase invisível no caule. “É cochinilha”, falou o mago verde. E descreveu a praga, capaz de dizimar em pouco tempo uma lavoura inteira de maracujás, como havia acontecido na chácara de um amigo dele.

Fiquei apavorada, pois sei que as pragas não têm cercas. Aos poucos fui acalmada, ciente de que há fórmulas, algumas até resultado de combinações caseiras, capazes de dizimá-las desde que elas não tenham tomado conta de tudo, como havia acontecido aos maracujazeiros. Tendo ouvido explicações básicas sobre as cochinilhas, ficou me perturbando a minha ignorância. Como havia desconhecido até então a existência daqueles singulares seres microscópicos capazes de matar no mais absoluto silêncio? Apenas três milímetros quase invisíveis, fixando-se no organismo vegetal e usando a boca para perfurar a superfície e se alimentar da seiva, as cochinilhas haviam sugado incessantemente os nutrientes da minha árvore, inviabilizando a fotossíntese e por um triz quase lhe tirando por completo a vida.

De onde vinham? Como haviam aparecido no meu jardim, assim, sem serem notadas? Não emitiam nenhum sinal? Como se adivinhasse meus pensamentos, Seu Hermínio falou: ‘A gente percebe a praga se instalando quando as folhas perdem viço, com partes escuras que logo ficam rendadas. Engrouvinham, como mostrei para a senhora. Só que tem o seguinte: se a planta está forte, a cochinilha não faz morada, ela não prolifera. Aqui faltou cálcio na terra, teve um desequilíbrio que afetou o cotonete, ele ficou fraco e a cochinilha aproveitou. É como o vírus da gripe, sabe? Se a resistência está minguada, ele aproveita e prolifera no nosso corpo.” Antes que eu pudesse prosseguir com minhas inquietações, concluiu: “O jardineiro que me substituiu não viu nada disso. Ou então não sabia.”

As providências para acabar com as cochinilhas envolveram podar os galhos, pulverizar inseticida, equilibrar o solo com cálcio. Foi o preço a pagar para ver a árvore florir, talvez, porque certeza não há, no próximo outono. O que existe é esperança. Enquanto não retornam os brotos saudáveis, sinal de que folhas e flores virão, o atual aspecto do cotonete me faz pensar em outros tipos de pragas que infestam muito além do jardim. São as que aparecem especialmente quando estamos fragilizados, vulneráveis, com baixa em nossas defesas, expostos aos sugadores de energia, os tais vampiros; e sobretudo se não percebemos os sinais de perigo. Há momentos em que urge lucidez para enxergar as pragas e não dar nenhuma acolhida a elas; também determinação para extirpá-las radicalmente, cortando até quase no cerne quando já se alojaram.

E para que os plantios não sejam contaminados e floresça só o que for auspicioso, sempre será de bom senso, e de bom gosto, lembrar o Shakespeare de ‘Otelo’: “O meu corpo é um jardim e a minha vontade o seu jardineiro.”

Todos podemos ser jardineiros de nossos sentimentos.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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