
Dizem que artistas são antenas da raça no sentido de que captam o que ainda está por acontecer. Tipo de profetas sem o saber, suas profecias são atualizadas muitas vezes quando eles já morreram. Na literatura, arte da palavra, Jules Verne, prevendo submarinos e viagem à Lua, e Aldous Huxley, antevendo a era da vigilância total sobre as pessoas, descreveram a sociedade do futuro. Gênios para uns, iluminados para outros, criaram o gênero que seria chamado ficção científica.
Em outro campo das humanidades, onde a imaginação não elide a observação, três ficcionistas exerceram papel semelhante ao apontarem uma transformação que ocorria no século XIX dentro da instituição conhecida como casamento. Os franceses Honoré de Balzac e Gustave Flaubert e o russo Leon Tolstoi sinalizaram a gênese de um novo perfil feminino que emergia de uma crise conjugal. Os livros que escreveram sobre o tema foram respectivamente ‘A mulher de trinta anos’(1843); ‘Emma Bovary (1857) e Anna Karenina (1874).
O segundo e o terceiro títulos disputam o primeiro lugar no ranking de melhores romances já escritos. O primeiro, pela fragmentação resultante de ter sido criado aos poucos, ao longo de vinte anos, para compor ‘A Comédia Humana’, mostra fragilidades estruturais que o excluem dessa colocação. Em compensação, inspirou um adjetivo no idioma português que perdura até hoje, “balzaquiana”, termo que pretende designar a mulher que tendo chegado aos trinta anos deveria apresentar um bom nível de amadurecimento emocional. Um equívoco, naturalmente, quando se tem em mente a protagonista da história, Júlia.
Entre 1842 e 1872, ou seja, no espaço de trinta anos, os autores mencionados publicaram romances lidos até hoje com admiração, prazer estético e curiosidade. Em suas páginas está a sociedade que se transformava na Europa por conta das guerras napoleônicas, da revolução industrial, da decadência da aristocracia, do fortalecimento da burguesia e também em decorrência de uma complexidade de fatores que modificariam o jeito de viver dos humanos até que o século XX chegasse com outras mudanças.
Muitos pontos de convergência unem as personagens Júlia (Balzac), Emma (Flaubert) e Anna (Tolstoi). Pela similaridade de comportamentos, a análise de seus perfis poderia levar à conclusão de que houve influência de um autor sobre o outro no processo de criação. Mas talvez seja mais plausível imaginar que os romancistas deixaram-se conduzir pelo ar de seu tempo e seus olhos de lince começaram a captar a farsa de casamentos infelizes que sobreviviam sob ‘a capa diáfana da hipocrisia’. Entretanto, é importante reconhecer que esses autores não incidiram no erro da generalização e um exemplo disso é que Tolstoi abre seu monumental Anna Karênina com a frase arrebatadora: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
São as mulheres infelizes (e belas) que inspiram os três escritores. Júlia casa-se muito jovem e apaixonada com um coronel do exército napoleônico, homem que, segundo o narrador, ‘só sabia duelar, comer e amar a primeira que aparecesse’. Anna se une a um aristocrata culto, sério e importante ‘mas extremamente frio e conservador’. Emma se torna a mulher de um médico de origem rural, ‘bondoso mas medíocre, destituído de qualquer ambição’. Acontece que Júlia, Anna e Emma haviam idealizado seu par e o próprio casamento, situação que as configurava como românticas incuráveis vivendo o inferno de um contexto realista que tinham de encarar. Não suportando a frustração, indiferentes até à maternidade que lhes parecia tediosa, elas empreendem fugas envolvendo-se em relacionamentos com amantes que as conduzirão à ruína. O meio em que viviam não admitia a traição feminina. Era inclemente em relação às adúlteras, embora admitisse com benevolência os adúlteros.
Talvez o leitor se pergunte por que ler hoje os três romances citados. Eu diria que é porque essas obras se situam no limiar entre a transgressão feminina e a crítica à sociedade. As personagens de que falamos neste texto são as primeiras na literatura a se questionarem sobre seus sentimentos, que independente de suas vontades as assaltam. Também admitem que as emoções fazem parte de suas existências, embora não saibam lidar bem com elas num contexto formatado para o silêncio feminino. Confusas diante daquilo que devem aceitar por conta das injunções sociais mas no seu íntimo rejeitam; indignadas na sociedade que confere valor e poder apenas aos homens; abaladas emocionalmente pela desilusão de se encontrarem em um mundo muito diferente daquele com o qual haviam sonhado, essas mulheres criadas por escritores, mas por certo muito vivas no entorno social dos autores (Tolstoi se inspirou em história real contada por um amigo) são as primeiras na literatura ocidental a questionarem a opressão do masculino sobre o feminino. Suas falas, em geral monólogos interiores, traem o desgosto de ver o casamento como prisão, o desejo de obter alguma emancipação e autonomia, a dúvida e o medo diante de escolhas interditadas às mulheres.
É claro que obras como essas causaram desconforto a seus autores porque mostravam algo que a sociedade resistia em aceitar. Não por acaso, por conta de Madame Bovary Gustave Flaubert foi levado às barras da Justiça e instigado a dizer quem era aquela mulher bizarra que nomeava seu livro. “Madame Bovary sou eu!”, respondeu ao juiz que o interrogava. Dessa forma assumia a crítica social imanente ao romance que mirava a família, o casamento, a dependência da mulher mas também a noção de fidelidade, os lugares da inveja, a natureza da hipocrisia, a potência do desejo, os perigos da paixão.
Ao contrário dos escritores românticos ainda em ação no período, que douravam a pílula e destinavam sempre suas heroínas a finais felizes junto aos seus amados, os que estavam fundando o Realismo, e talvez nem o soubessem, encaminhavam suas protagonistas infratoras à morte, como se desejassem puni-las. Impossível não lembrar Walter Benjamim: ‘A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar’.
Será necessário mais algum tempo até que os criadores deixem de sacrificar suas criaturas em nome de uma moral na qual eles não acreditam mais. Isso acontecerá quando escritoras assumirem seu papel de fala seguindo Simone de Beauvoir a partir de 1949, data de publicação de ‘O Segundo Sexo’.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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