
Da história de si somente sabia que seus avós foram leprosos num tempo em que esses eram tratados como párias sociais, confinados em leprosários, colônias de lázaros ou abrigos de hansenianos, assim as denominações. E que sua mãe fora separada desses pais quando bebê, levada a um educandário-orfanato- para não contrair o mal que progressivamente desfigurava seus portadores.
Então, sua mãe Edith seria dada a adoção, mas nunca a adotaram, assim, cresceu muito calada nesse orfanato, criada por freiras rigorosas. Imersa no mundo dos pensamentos, cumpridora das funções delegadas pelas coordenadoras, vivendo à parte, intuindo os perigos de ser percebida: escolhia a discrição, obscuridade, ser quase invisível como meio de sobrevivência e driblar, sem jeito e sem sucesso, o assédio de alguns dos filantropos mantenedores da instituição.
Não lhe haviam claramente ensinado o “não” e, nem tampouco, de que forma poderia existir no “sim”; tão pouco sabia ela, que a barriga não demorou a crescer.
Como não cairia nada bem uma interna em situação de gestação em orfanato-convento-educandário, foi enviada sozinha, cumprindo a sina mesma do exilado, a uma casa sustentada pela instituição em troca de trabalhos manuais que Edith pudesse oferecer: costura de roupas, preparo de pães que diariamente enviava ao orfanato.
Quando sua filha Lígia nasceu, timbrada ela também na segregação ancestral, muito cedo Edith percebeu que a menina talvez fosse alérgica à vida. Virava sua cabecinha recém-nascida com o nariz colado ao travesseiro e, se a mãe não vigiasse, sufocaria. Tal era a renitência demorte na neonata criatura, que a mãe passou a suspeitar que ela tivesse nascido com o mal do suicídio. O que, ao longo do tempo, conforme seu crescimento, foi se confirmando mais e mais. O impulso de querer morrer lhe vinha feito letargia e parecia que a teleguiava nalguma espécie de transe à destruição de si.
Aos doze anos, tentou a mangueira do chuveiro – frágil demais. Mais adiante, pílulas. Havia sempre alguém a lhe socorrer antes que qualquer efeito mortífero sobrepujasse os curativos – se veneno, se remédio, a depender da dose – e então, nas orgias com caixas de remédios, o máximo que lograva eram lavagens gástricas que a faziam vomitar arco-íris ou unicórnios, pela mistura nas cores dos comprimidos e cápsulas.
Desde muito pequena pensava que todos nascemos mesmo para morrer, então, não temia coisa alguma, nem tampouco tinha planos futuros, exceto suas tramoias sempre malsucedidas de auto extinção.
Bem maior, tentou depois o pulo da janela, muito baixa, contudo, a lhe fraturar um fêmur e nada mais. E assim seguiu, suspeitando, ela própria, que a despeito de suas fortes tendências tanáticas, a morte talvez não lhe quisesse. Não era possível que fosse tão incompetente a ponto de não obter êxito nas únicas empreitadas que moviam sua existência rumo à inexistência; todo sistema se dirige para a sua autodestruição, entropia, estudara isso em Física. Teria o corpo fechado?
Chamavam-lhe, tal a pasmaceira, sempre mais para quieta, desde pequena, de peso morto. E há aquela coisa, aquele único momento, dito ou ato que desviará e talvez mesmo definirá o rumo de uma vida inteira.
Queimou a mão, deliberadamente.
Comeu alfinetes.
Bebeu água sanitária.
Mastigou vidro.
Engoliu uma lagartixa e teve uns revertérios no estômago e fígado, que era indigesto, o bicho.
Foi ficando famosa na emergência do hospital local. E resistente. A cada tentativa de morrer, a vida nela parecia se fortalecer, teimar e prevalecer. Pensou numa saída mais abstrata: quem sabe pudesse morrer por excesso de verdade? Persegui-la a todo custo, fugir de toda ilusão, como seria viver na dureza do real, da verdade bruta? Quem sabe se aproximasse mais do seu intento de se desfazer, vivendo o mesmo tema sempre, com variações eternas. Auscultar a vida no pontiagudo e áspero da realidade, sem floreios, nem tampouco fantasias, não anestesiar, sentir a dor quem sabe lhe inoculasse alguma morte mais rapidamente.
Fumou cigarro, talo de chuchu, vape, cachimbo, narguilé. Comeu margarina.
Abriu-se numa sexualidade exuberantemente livre, promíscua, desprotegida, desvairada. E então, contraditoriamente, mais viveu. E gostou.
Comeu todas as comidas ultraprocessadas proibidas pelos manuais de alimentação saudável. Aliás, tudo o que estava convencionado como saudável a empurrava rumo ao diâmetro oposto. Sua escolha seria sempre aquilo que mais fizesse mal, seu modo de se contrapor.
Naftalinas chupadas feito balas conseguiriam somente lhe irritar a mucosa bucal e produzir uma leve azia acompanhada de um hálito infernal. Guardou no armário uma provisão de veneno para ratos, chumbinho que de esquecido, teve a data de validade vencida e acabou devorado pelos ratos que nas madrugadas visitavam seu quarto cheio de farelos de salgadinhos e comidas malsãs. Ratos que acabavam morféticos, quase aleijados, mas não mortos pela ação do veneno vencido.
Havia o gás. Havia o secador de cabelos ligado na tomada e que poderia cair na banheira cheia de água para uma eletrocução. Mas, com o passar do tempo, começou a evitar planejar mortes violentas demais, não queria acabar feia num caixão, quem sabe um final mais plácido lhe coubesse melhor?
Pensava nos possíveis finais. E se dava conta de que todo o seu percurso se resumia em SOMENTE nisso pensar. Mas, se pensava também nos finais e descobria que mal tivera um início. Nem tampouco algum digno decorrer. Apenas, sempre, a perspectiva da abreviação feito sombra, delineio, motivo, perspectiva. Até que num dos relances de distração, respiro, fresta, o azul lhe invadiu.
Azul dos olhos do Flávio, parecido com duas contas turquesas de vidro, feixe de alguma luz que lhe sussurrava e convidava ao que não sabia. Talvez início, inaugurar-se nalguma possibilidade do azul.
Vanessa Maranha é psicóloga e escritora
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