
Invernagem é palavra nova no nosso léxico. Deverbal, pode nos linkar mentalmente a invernar e hibernar, o que leva a equívocos. Pra começo de conversa, invernar significa ‘passar o inverno em local abrigado, escapando aos seus rigores’ enquanto hibernar designa ‘estado de entorpecimento caracterizado pela diminuição do metabolismo e da atividade durante o inverno’. Já invernagem é a voluntária permanência num lugar gelado, frequentemente em condições extremas, testando limites.
Se a hibernação não é possível a animais homeotérmicos, que mantêm a temperatura corporal constante e não possuem estrutura fisiológica para entrar em estado de torpor profundo como ursos e esquilos, a Invernagem pode ser experiência humana. Foi o que provou a brasileira Tamara Klink, 28 anos, a primeira no mundo, pelo menos oficialmente, a realizar uma Invernagem no Ártico em 2024.
Nascida numa família de velejadores famosos, filha de Amir Klink, desde cedo ela esteve acostumada a viver grande parte do tempo no mar. Mas sua última aventura, dessa vez solo, consistiu em permanecer num barco ancorado durante o último inverno polar na Groenlândia. Sua estadia durou seis meses e demandou navegar desde a França, para então ancorar o veleiro de dez metros, chamado Sardinha, numa das ilhas. Ele foi sua casa durante os meses em que as temperaturas atingiram quarenta graus negativos, o que significou grande risco de congelamento.
Por seis meses ela não teve nenhum contato humano. Esse tempo foi marcado pela solidão, falta de luz solar, por temperaturas extremas e pelo perigo de ataques de ursos polares. Precisou improvisar e usar a criatividade para se adaptar às condições de vida que incluíam ausência de água potável e necessidade de usar gelo derretido para fazer a higiene.
É claro que ela se preparou durante meses para a experiência com a ajuda de profissionais da saúde física e mental. Uma psicóloga lhe ensinou técnicas de lidar com a solidão e o isolamento. Entre elas estava a leitura de livros escolhidos pela navegadora. Tamara Klink, que também é escritora, usou parte do seu tempo na função leitora. Sem nenhum ser humano por perto, os livros físicos se tornaram companhia fundamental durante a Invernagem. Ela estima ter lido cerca de setenta títulos.
Entre os livros estavam ‘Escute as feras’, de Nastasha Martin, que alerta para os cuidados com os ursos e o risco de ficar louca num retiro solitário e gelado; ‘Le Grand Hiver’, de Sally Poncet, que permaneceu semanas na Antártida com o marido num momento em que a região era vista como lugar inacessível; ‘A Incrível Viagem de Shachleton’, de Alfred Lansing, literatura de exploração que inspirou outros livros, exposições e filmes; ‘North To The Night’, de Alvah Simon, que atracou no norte do Canadá em região repleta de ursos.
Mas não só livros com temas próximos ao universo de interesses imediatos da navegadora cumpriram sua função de entreter e emocionar. Ela também leu ‘Assim falava Zaratustra’, de Nietzsche, relato sobre um homem que viveu 12 anos no alto de uma montanha e um dia desceu para contar às pessoas a sua experiência, o que fez a navegadora comentar: “Nossa! Ele ficou doze anos sozinho (...)E aí eu lembrei: ‘Mas eu estou totalmente sozinha aqui’. Às vezes, eu nem lembrava mais disso, tinha a sensação de ter alguém comigo. Alguém invisível, que não falava, reagia, mas estava lá.” Era com certeza algum dos personagens dos livros que lia, entre eles ‘Grande Sertão- Veredas’, de Guimarães Rosa, que ela já tinha tentado em vão ler outras vezes: “Mas lá na Invernagem eu tinha finalmente muito tempo. Então eu enfrentei o ‘Grande Sertão’, que é o meu livro preferido.”
É incrível imaginar isso, ler um dos maiores romances já escritos no Ocidente no cenário gelado e impassível da Groelândia quando se sabe que os personagens do escritor mineiro se deslocam o tempo todo pelo árido e quente sertão mineiro. Aí está a beleza e importância da literatura que humaniza, faz o leitor viver outras vidas, aproximar-se das criaturas erguidas com palavras, entender suas ações, pensamentos e sentimentos. ‘O leitor literário é capaz de ir além de si mesmo, se multiplicar, viver outras vidas e experimentar o mundo com o olhar do outro. Pode compreender, se compadecer das dores alheias e amar o diferente num exercício fundamental de alteridade e humanização.’ Como não lembrar Antônio Cândido?
Tamara Klink não é apenas uma leitora qualificada. Ela é também poeta e prosadora e seus livros parecem obedecer a um amplo projeto literário que pretende espelhar suas experiências no mar. Seu primeiro título, ‘Um mundo em poucas linhas’, data de 2021 e reúne poemas e textos em prosa poética. Os assuntos abrangem as várias viagens feitas pela autora com a mãe, as irmãs e o pai desde criança, mas o tema é a travessia – dos oceanos e da vida adolescente para a adulta. ‘Mil milhas’, de 2022, mostra a longa preparação, que durou 24 anos, ou seja, desde o seu nascimento, para a primeira viagem solo, da Noruega até à França.
O pequeno veleiro adquirido e reformado representou o passo inaugural na direção do sonho de se tornar navegadora. É emocionante a forma como ela comenta ‘ser necessário estar distante da família para entender-se parte dela’. O último título publicado, ‘Nós- o Atlântico em solitário’, é sobre a empreitada desafiadora no ano em que a pandemia assombrava o mundo. Partindo da França, tendo como objetivo chegar à costa brasileira pelo mar, a navegadora enfrentou alguns fracassos, como desvios de percurso. Mas colheu vitórias testemunhadas em tempo quase real por admiradores que a seguiram pela internet aplaudindo todas as superações, sobretudo as psicológicas.
Os diários da Invernagem na Groelândia já estão separados para dar origem à próxima obra da autora, ainda sem título. Mas o processo de transposição das memórias para as páginas é custoso, segundo Tamara: “Por mais que todo mundo diga que gosta do livro, para mim é muito triste, porque sempre vai ser uma ficção. Por mais que eu tente ser fiel à realidade, sei que é ficção porque as coisas não vieram em palavras”. Como não lembrar Clarice Lispector ao escrever que ‘a Vida supera a Ficção?’
A experiência insólita da navegadora repercutiu entre os amantes das aventuras radicais. Mas suas entrevistas e especialmente seus livros despertaram em outros, grupo no qual me incluo, analogias com o estado de nossa alma que às vezes se encontra, por razões diversas e até desconhecidas, nesse contexto de frio extremo, falta de luz, silêncio profundo, risco de violência, ameaça de selvageria, sobretudo carência de calor. A Invernagem de Tamara Klink nos inspira a perseverar com ânimo forte a fim de tornar líquido um estado de penoso enregelamento: ler a escritora pode ser uma forma de dar uma machadada nesse gelo, como Kafka definiu os livros realmente importantes.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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