
Gênero literário de origens muito antigas, a biografia nunca desapareceu do mapa das letras. Apenas se modificou na forma, mantendo o interesse do público no decorrer dos séculos. Foi muito forte na Antiguidade, enfraqueceu na Idade Média, voltou com vigor na Renascença quando cronistas mergulharam na Divina Comédia para trazer à tona significados que Dante Alighieri, o primeiro e maior poeta da língua italiana, deixara no plano conotativo.
Estamos nos referindo à biografia literária, que esteve desde a gênese atrelada a figuras exponenciais no âmbito das artes. E apesar de Bourdieu, que a questionou há três décadas, continua na moda. Na França, ainda país difusor de ideias, enquanto François Dosse lançava ‘Le pari biographique/ Ecrire une vie’ (A aposta biográfica/ Escrever uma vida’), uma mesa redonda organizada pela Universidade de Paris e mediada por François Marmande reunia em novembro do ano passado vários autores que escreveram sobre outros. De Laure Adler, que elegeu Marguerite Duras, a Michel Suruya que escolheu George Bataille, as discussões sobre a fascinante relação entre biógrafos e biografados repercutiram na mídia especializada. Por ela ficamos sabendo, entre outras coisas, que se firmou consenso de que ‘se há um objetivo que a biografia pode se dar é enriquecer as leituras sobre uma obra literária, pois a biografia é prima da crítica.’
Essas considerações surgem no contexto deste sábado,15 de fevereiro, quando o escritor Luiz Cruz de Oliveira lança seu livro “Domiciano- Poeta e Carteiro”, uma biografia. É obra de um artista que escreve sobre outro artista. Isso desperta reflexões que nos permitem avaliar o grau de intensidade das emoções que jorraram do poço criativo de Luiz Cruz para trazer à luz outro processo, o de criação de um compositor de música sertaneja, Antônio Domiciano, com quem o escritor mantém parceria há décadas, não só pelos vínculos da veia poética, mas também, e na mesma vibração, pelos liames da amizade.
Meses de trabalho árduo precederam o lançamento do livro onde o biógrafo combinou, de forma bela e sugestiva, o arco narrativo de uma vida contada na linha do tempo cronológico com o registro nominal do acervo de canções assinadas pelo biografado. Trinta letras compõem o capítulo ‘Alguns Diamantes’ e uma dúzia delas se espalha por outras páginas, desde ‘Massa Falida’, que anuncia o texto ‘O Poeta e o Intérprete’, passando por ‘Berrante do Tempo’, ‘Camisa Manchada’, ‘Saudade de um Boiadeiro’, ‘Caçador Virando Caça’, ‘Filha da Roça’, até ‘Laço da Paixão’, ‘O Choro da Natureza’, ‘Velha Paineira’, ‘Visitante’. É pequena parte de obra musical que soma mais de trezentas composições.
Os fãs que se derem ao trabalho de olhar em retrospecto vão lembrar que as canções iniciais expressam a nostalgia de um mundo perdido- o do campo que alicerçou a infância; já as posteriores trazem evidentes sinais de consciência social; e as últimas desvelam contido lirismo. Fazendo uso de habilidades inerentes ao escritor que todos conhecem, Luiz Cruz traça junto a essa linha que apresenta o compositor, duas outras paralelas: a que mostra a vida do homem exigido em sua luta pela sobrevivência e a que perfila a sociedade brasileira em momento decisivo de transformação.
Regina Bastianini, em prefácio didático, registra: ‘Quem nasceu na zona rural do Brasil nas décadas de 1940 e 1950, dificilmente não terá vivido o impacto de dois importantes acontecimentos de nossa História: o êxodo rural e suas consequências; e a influência do rádio.’ (...) ‘Muitas das letras de Antônio Domiciano dizem essa história, com os pés bem fincados no presente, mas sem abrir mão da História e da Tradição. E o diz numa linguagem eivada de poesia, plantada e colhida na sensibilidade, na observação, e cultivada no estudo’ (...) ‘Também filho do êxodo rural e amante da música sertaneja, ninguém melhor que o professor Luiz Cruz para registrar a trajetória de Antônio Domiciano em livro.’
De fato, a História impinge suas marcas em toda vida humana e esse fato transparece tanto na trajetória de Antônio Domiciano, quanto em muitas de suas letras e na própria linguagem do narrador. Este encontra no poético a tradução da literariedade do biografado, de quem registra o movimento no ofício de carteiro, a labuta com as canções, os desafiadores caminhos da publicação. Eis que surgem então, em meio a inúmeras imagens belas, as metáforas (‘Domiciano dava enxadadas na seara do conhecimento’); os neologismos ( ‘vagalumeando’, ‘infanciando’, ‘tartarugueiam’); as alusões eruditas (‘Os poetas do Arcadismo cultuavam o Parnaso- o céu dos poetas. Os nossos músicos sertanejos foram mais práticos. Criaram concretamente o seu Parnaso no centro da cidade de São Paulo, mais precisamente na Praça Júlio de Mesquita(...) O Bar do Mococa foi o Parnaso para Domiciano’).
Ao falar de ‘Domiciano- Poeta e Carteiro’, torna-se impossível não fazer referência ao exigente trabalho de pesquisa em que mergulhou o autor. Mas valeu a pena, pois o resultado é presente para os fãs de Domiciano que poderão conferir os títulos de todas as suas canções, os nomes de cantores e duplas sertanejas que gravaram as composições, e ainda fotos de alguns lugares significativos por onde passou e viveu até chegar à sua morada atual.
Outro detalhe que enriquece o livro de Luiz Cruz é o apêndice chamado ‘A voz do poeta’. Ao responder a questões formuladas pelo biógrafo, o biografado desvela em conceitos, definições e aforismos sua maneira de viver e enxergar o homem (‘Uma obra de arte que necessita urgentemente de restauração’), o poeta (‘Um ser humano comum, a única diferença é que nasce com asas’), a solidão (‘Oportunidade que a vida nos oferece para ouvir os conselhos da alma’), a velhice ( ‘Interruptor que o tempo usa para desligar a ilusão’), a morte (‘A porta que nos conduz a várias incógnitas’), a sorte (‘Palavra usada por quem não reconhece o trabalho do outro’). Como se vê, além de poeta, filósofo.
O evento que marca o lançamento deste livro importante para a vida cultural da cidade, os leitores de Luiz Cruz, os fãs de Domiciano e os amantes de música sertaneja acontece neste sábado no salão do Teatro Judas Iscariotes, localizado na Rua José Marques Garcia, 395, Cidade Nova. O convite sugestivo, idealizado pelo escritor, reproduz a capa do livro, que exibe fundo preto sobre o qual se destaca envelope branco. Nele somos informados de que a sessão literomusical marcada para começar às 19h30 foi batizada como “Noite Sertaneja’. Vamos aplaudir nossos artistas?
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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