
As personagens dos filmes de David Lynch são mesmo muito realistas mesmo a trama sendo revelada em explosão de estrelas confusas, no sentido de parecerem com alguém de vida comum que pode estar morando na casa ou no apartamento ao lado, e vivendo um drama caótico perturbador e anônimo capaz de acordar qualquer consciência adormecida. Além de belas obras perturbadoras, nem sempre no melhor sentido da palavra, trazem personagens cativantes: coisa rara quando o assunto é arte. Tudo na criação do cineasta é mistério, ou misterioso, emulando a vida que vivemos, ou negamos ter, quase nunca coisa para ser compreendida completamente: narrativas psico-traumáticas submersas num caudaloso existir complexo. Quando pequena e interiorana cidade de Twin Peaks nos foi apresentada em 1990, sabíamos que tudo aquilo poderia ter acontecido em Ribeirão Corrente, Patrocínio Paulista, Rifaina, Restinga ou São José da Bela Vista. E o futuro não poderia ser mais como antigamente.
Os filmes de David Lynch sempre me deram a sensação de terem sido roteirizados pelo filósofo francês Micheal Foucault, também febril ao telefone numa conversa de duas horas com Zygmunt Baumann. Os dois teriam falado de Gilles Deleuze e Wilhelm Reich, Platão, Carl Jung e Espinoza, traduzindo para uma linguagem cinematográfica própria o desenho das linhas incompreensíveis, por serem invisíveis, da nossa sociedade pós-industrial neoliberal contemporânea. Tal roteiro alinhavando a percepção e a sensação térmica da esquizofrenia social que vivemos como projeto político embalado pela fragmentação das nossas subjetividades.
Os filmes do diretor, roteirista, produtor, artista visual, músico e ocasional ator estadunidense, falecido neste 15 de janeiro, eram nebulosas estelares implodindo algo fundo em nós, alguma coisa tida como certa, e nos deixando sem os limites que inventamos que comprovem o começo e o fim que sustente a estrada sem fim. O desamparo que nos deixa flutuando sem chão, e ainda apaixonados, só temos que continuar embebecidos na beleza das coisas fugidias, no que transcende, no que liberta criações desamarrando as certezas para usufruirmos de algo importante que nos escapa.
Nessa “pós-ultra-liquidada” modernidade cujo lema parece ser “seja burro, seja forte, medicado e feliz”, o delírio e a imaginação bateram asas na finitude da atmosfera, tão pesada quanto necessária para a vida na Terra. O que nos prende liberta poucos. Morrer é definitivo, vive-se apenas uma vez e isso confere esplendor à experiência. Quando um espírito livre desencarna diz-se que a pessoa morreu, e corremos o risco de esvaziar de sentido tudo que dela permanece. Nem sempre tomamos o cuidado de não nos perdermos junto desse erro e ali um pedaço de nós, a trajetória de uma vida criativa deixa legado composto de incontáveis influências que se desdobram em novas criações.
Baltazar Gonçalves é professor de História formado pela Unesp, membro da Academia Francana de Letras, lançou recentemente o livro de contos “Quando permitir a maré” pela editora Patuá.
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