Paráfrase é, por definição, um tipo de intertextualidade que consiste na citação indireta de outro texto e a manutenção do sentido original do texto parafraseado.
Assim, parafrasear é dizer a mesma coisa, mas com outras palavras ou outras imagens.
Ao repisar o já dito, a paráfrase, portanto, nunca gozou de prestígio como instrumento para a crítica literária, sobretudo no new criticism, uma vez que tangenciaria pressupostos subjetivos (uma apostasia, na análise textual) e negligenciaria as leituras estruturalistas, fenomenológicas, psicanalíticas, entre outras lentes possíveis e academicamente mais recomendáveis para se ler criticamente um texto.
No entanto, ao construirmos a crítica de algumas escritas mais reflexivas e com força na trama textual, prosódica e poética, a meu ver, a melhor chave de leitura e interpretação é ainda aquela que parte da paráfrase com a licença mesma do impressionismo, em respeito ao próprio texto.
Ora, se uma das melhores críticas literárias (e que nem se pretendeu como tal), sobre a “A Gradiva”, de Jensen, foi construída por paráfrase por ninguém menos que Sigmund Freud, sinto-me então autorizada a assim tecê-la, em relação ao livro “Quando a maré permitir”, de Zerobill, heterônimo de Baltazar Gonçalves, recentemente lançado pela Editora Patuá, produto de contemplação do fomento Bolsa Cultura, pela Feac/ Prefeitura Municipal de Franca.
Dividido em três tempos: barragem, vazante e lamaçal, uma alegoria provavelmente inconsciente das instâncias id, ego, superego da psiquê humana, o livro balança pela alinearidade e constância/inconstância das marés por meio de prosa poética e achados líricos/filosóficos/metafóricos como “paredes frias encorpando séculos”.
Em “barragem” e “vazante”, contos mais próximos da crônica. Em “lamaçal”, o autor desdobra sua excelência como contista no excruciante “Raiva Paralítica”, um conto atordoante, cinestésico, aqui sem paráfrase, para que o leitor possa fruir de sua inquietante forma/conteúdo no nó borromeano perfeito.
A observação cortante em lucidez de talhe clariceano: “o pai-prefeito que tinha poder sem autoridade acatou a vontade da mimada por ser mais cômodo que prestar-lhe atenção”.
Joias brilham por entre enredos fronteiriços, de acento roseano - é de lavra Modernista a melhor escrita de Baltazar que adentra os clarões e as escuridões da alma humana. No detalhe, no dito quase distraído jaz a grandiosidade da literatura de Baltazar Gonçalves.
O que dizer de uma construção como “diante do ferro adornado de cristal, o amor se detém reflexo caleidoscópico de nossas faces esquecidas”?
“Abelcaindo” tem a riqueza do sintagma e do neologismo, da pena inventiva, da crítica social e histórica: “a posteridade julgou o fratricídio necessário por notar do Criador o dedo onipresente metido na história”.
No todo, fica patente a veia poética, sua grande potência. Gosto imensamente do Baltazar poeta, militante, indignado, sensível, subindo aos altiplanos em voos, descendo ao Hades da agonia da dependência química sempre perene, ainda que abstêmia.
“Quando a maré permitir” precisa, para uma próxima edição, de nova revisão, preparação de texto para a retirada de certas gralhas e adiposidades expressivas, bem como atenção a enquadres mais específicos ao eixo temático e no estilo não-eufemístico próprio do autor que melhorariam ainda mais o que já está ótimo.
É no máximo de sua autenticidade ora mordaz, ora sensível, que está a singularidade desse autor magnífico, Baltazar Gonçalves. Sua maré permitida.
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