NOSSAS LETRAS

As dálias que me habitam

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 4 min

Incluída em lista de botânicos ingleses da Royal Horticultural Society como uma das dez flores mais bonitas do mundo, a dália não é muito cultivada no Brasil. Mas já viveu tempo de relevância por aqui, nos jardins domésticos dos anos 60. Menina ainda aprendi a admirá-las com minha mãe, que arrancava da terra os bulbos (‘batatas’, ela dizia) quando nos mudávamos de casa para replantá-los no novo lugar para onde íamos. Foi assim que todos os nossos quintais, mesmo primários, ofereciam várias vezes no ano a alegria multicor das flores.

Lembrança nítida que guardo delas, além de exuberantes entre folhas vivas, é em forma de ramalhete preparado com cuidado para ser entregue à dona Maria Avelar, alfabetizadora de milhares de francanos. Pela dificuldade em abraçá-lo, calculo hoje que o buquê era composto por pelo menos dúzia de enormes flores alaranjadas como pôr do sol no estio, coisa muito rica de se ver. Foi acontecimento que a memória fixou e, decorridas décadas, permanece irretocável, à minha disposição: quando quero eu o resgato, como aconteceu neste outubro dedicado a professores e crianças.

Mas também ocorre de, por razões insuspeitadas, não ser exclusivamente o meu desejo a conduzir a lembrança, mas algo incontrolável e misterioso que aproxima o passado do presente. Nesses momentos o sentimento diante da beleza até faz bater descompassado o coração. Então revejo em primeiro plano aquelas dálias e todas as outras, reais ou metafóricas, que meus olhos puderam contemplar ao longo da existência. Em instantes intensos esbarro no personagem de Proust diante da cerca de pilriteiros que o deslumbrou em Combray quando tinha sete anos. A epifania o acompanhou por toda sua jornada onde o presente carregava traços do passado nunca perdido, sempre capaz de ser recuperado pelo milagre da memória afetiva.

Alma dividida entre esses dois tempos, recentemente fui atrás da história das dálias. Descobri que os primeiros registros a respeito delas datam do período da descoberta da América, quando incontáveis produtos da natureza surpreenderam os europeus: o novo causa espanto. Foram os espanhóis que as encontraram no México, país que, aliás, as tem como flor nacional. Batizada pelos astecas como acccotli ou cocoxochitl, a palavra descreve o aspecto do caule oco: ‘tubos ou canos’. Por seu caráter descritivo, em todos os idiomas a etimologia nos leva muitas vezes para imagens poéticas das coisas.

Cultivada pelos nativos, a flor chamou a atenção das primeiras expedições pela característica nutritiva dos bulbos, semelhantes à batata-doce. A intenção era introduzi-los na cultura alimentar europeia, tentativa que fracassou. Só dois séculos depois a função ornamental seria valorizada pelo diretor do Jardim Botânico de Madrid. Em viagem ao México, ele se encantou pelas dálias e as levou para a Espanha onde começaram a florescer partir de 1798. A primeira recebeu o nome de Dahlia pinnata; a segunda, Dahlia rosea; a terceira, Dahlia coccinea. O nome do gênero, Dahlia, representou homenagem a notável botânico da época, Andrès Dahli. A partir de então, bulbos foram enviados como presentes para personalidades, estudiosos e instituições internacionais.

Oferecer plantas como presente denota sensibilidade e recebê-las costuma despertar gratificação. Há algum tempo fui agraciada com um pé de dália vindo da parte da amiga Zelita Verzola, confreira na AFL. Sabedora de meu gosto, ela havia pedido a uma pessoa de seu relacionamento que cultivasse para mim a flor que já chegou cor-de-maravilha. Cuidei com muito zelo e a levei para o chão ao perceber que havia crescido muito em relação ao tamanho do vaso. Logo me arrependi ao ver que a partir da mudança ela minguava rapidamente, até desaparecer por completo na terra, sem deixar vestígio. Fiquei frustrada e inconformada com aquilo que considerava a morte da dália. Até fiz luto.

O tempo passou. Depois da sequidão dos primeiros meses do ano, vieram as boas chuvas de outubro. E com elas algo surpreendente, admirável, insólito: dia desses, ao tomar a primeira xícara de café do dia, um prazer que renovo a cada manhã, olhava as plantas reanimadas pelas águas caídas do céu quando vi um broto irrompendo da terra. Eram as primeiras folhas da dália que considerava morta. Desde então ela só cresce. Encontra-se em processo para se tornar adulta.

Esse fato aparentemente prosaico me fez refletir em profundidade sobre várias coisas que vão muito além do jardim. Aquelas que estão fora do alcance de nossa vista, como as raízes, bulbos e tubérculos sob a terra. Não os enxergar não significa que morreram. Na maioria das vezes estão laborando energias para novo desenvolvimento. Chegada a hora irrompem, porque a vida se mantém dentro deles. E, a ser verdadeiro o que ensinou Darwin, ‘tudo quer viver.’ Não só no reino vegetal, diga-se de passagem ou por fim.

Frida Khalo, a extraordinária artista mexicana que tinha nas dálias um de seus motivos estéticos, respondeu a alguém que lhe perguntou sobre essa predileção: “Pinto-as para que não morram.” Mui humildemente tomo emprestada a frase para dizer o mesmo sobre as dálias que me povoam: (d)escrevo-as para que não feneçam dentro de mim. Resgatá-las significa que minha memória está funcionando bem: enquanto isso estiver acontecendo, quero viver.

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